WILLIAM RAMIRES – Comendo papel [conto]
WILLIAM RAMIRES – Comendo papel [conto]

WILLIAM RAMIRES – Comendo papel [conto]

Veja você se isso é correto. Meu chefe agora quer que a gente mantenha um diário com as atividades do trabalho. Isso é um absurdo, para mim diário é coisa pessoal, onde colocamos nosso sentimento, nossas frustrações, ou até nossos desejos mais íntimos, uma conversa pessoal, um desabafo.

            Claro que isso não dará certo, se começar a escrever não serei capaz de me conter somente nas relações do trabalho. Sempre caio no sentimental, nos meus desejos mais secretos. No meu diário ninguém mexe. Ainda vem dizendo, que teremos reunião mensal para discutir os relatos dos diários, não quero nem ver. Não vai dar certo.

            — Então, todos vocês, já começaram a escrever sobre o dia-a-dia do trabalho, quero todo mundo relatando as atividades no diário. — falou o chefe logo cedo.

            Poxa, nem acredito, então é sério, não tenho como fugir, vou tentar ser imparcial.

            “Escritório de contabilidade MN de Andrade.

Diário de Juliana Fonseca.

            Dia 08 de maio de 2024.

            Hoje acordei bem disposta, o relógio tocou às seis horas da manhã, como todos os dias. Depois que terminei o meu noivado, passei a acordar sozinha, e não gosto disso.”

            Nossa, acho que estou sendo muito íntima, tenho que me concentrar e falar somente sobre o escritório.

            “Cheguei faltando cinco minutos para as oito. Cláudio me viu e veio em minha direção sorridente, estava usando aquela camisa verde que lhe cai muito bem, senti o cheiro da sua loção após barba quando ele me beijou no rosto. Nem conversamos, assim que ele virou as costas, percebi a cara de nojo da Camila, sei que ela arrasta umas asinhas por ele, mas fazer o que se sou mais bonita.”

            Vai ser difícil escrever isso sem relatar coisas íntimas. Até quando me atento para o trabalho, acabo falando de sentimentos pessoais. Seja imparcial Juliana, imparcial, é somente trabalho, se orienta mulher!

            “Na mesa ao lado direito senta Antonio Carlos Cavalcante, homem sisudo, sério, casado e pais de dois filhos, sem muitas afinidades para conversas comigo. Já na mesa do lado esquerdo fica Ana, essa acho que é minha amiga de verdade, apesar de que às vezes ela me dá asco. Com aquela conversa de pegação, ir às danceterias só para beijar homens, e às vezes até mulheres, diz ela. Mas não sei não, para mim ela fala demais, agora que estou solteira, quem sabe não saio um dia com ela e vejo qual é a real dessa conversinha.

            Na mesa da frente, Cláudio. Hoje ele está diferente. Aquele beijo no rosto que ele me deu, mexeu um pouco comigo, o perfume cheiroso, sua pele lisa, me deu vontade de virar o rosto e beijar sua boca.”

            De novo! Não posso escrever isso no diário do escritório, vai ser uma confissão atrás da outra. O pior é que são páginas numeradas, se eu arrancar vai dar na cara, faço o que então? Risco tudo?

Deixa eu continuar mais um pouco, vejamos onde isso vai parar.

            “Ao lado de Cláudio senta a esnobe da Camila, ela passa o dia todo dando mole para Cláudio, mas ele nem liga, se concentra em seus cadernos e no computador. Será que ele gosta de mim?

            Na mesa atrás de mim senta o Tarcísio, esse sei que gosta de mim, sempre me convida para os happy hours, no entanto, nunca aceitei, ele é até bonito, porém parece ser muito namorador, gosto de quem quer coisa séria, não acho legal esses homens pegadores.

            Hoje acho que não estou muito bem, me sinto carente, preciso arranjar outro namorado, gosto de acordar com outra pessoa.

            Acho que a única colega que não me dou bem de jeito nenhum aqui dentro, é aquela supervisora, Suelen Machado. O sujeita intragável, arrogante e acha que sabe tudo. Ela realmente tira minha cabeça do sério, quando ela cisma que seu trabalho está ruim, não há ninguém que a faça mudar de ideia.”

            — Vejo que está empolgada com o diário, hein, Juliana.

            — Chefe! O que você está fazendo aí, atrás de mim? — Juliana, num impulso assim que ouviu a voz do chefe, arrancou a folha e amassou, desesperadamente colocando aquilo na boca.

            — Porque você fez isso, mulher?

            — Mmmmm, mmm, mmmm. — ela respondia com a folha na boca. Começaram a brotar lágrimas de seus olhos e a moça acabou ficando toda corada.

            — Cuspa para fora, você vai se engasgar com isso! Gente esse diário é para escrever sobre o trabalho. Por favor, não faça com Juliana, não quero ninguém comendo folha aqui.

            — Me desculpe chefe, acho que exagerei.

            Eu sabia que não ia dar certo. Engoli aquilo a seco, agora a vergonha está estabelecida. Não há o que fazer, vou até o banheiro me recompor, nunca mais escrevo no diário aqui neste escritório.


William Roberto Fraga Ramires, residente em Andaraí (BA). Começou a escrever em 2023, participou de 150 antologias. Com conto finalista da Feira Literária de Santa Teresa (FLIST, 2024), 3º Lugar na Feira Literária de Pirassununga (FLIPA, 2024) e 2º Lugar na Antologia Desejos Profundos (Editora Persona, 2024). Semifinalista no Prêmio Kotter de literatura (2024), com o livro de contos: O abismo do conhecimento. Publicou duas coletâneas de contos: Por um mundo melhor (Opera editorial, 2024) e Bem-me-quer malmequer… em pedaços (Cachalote, 2024). Buscando estimular a leitura, escrevendo para um mundo melhor. Colorindo e perfumando as palavras. @william.rf.ramires

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