incandescentes luzes fantasmavam do alto a rua deserta. caminhava enrodilhado, aos soluços, adiando o destino. vergonha de chegar em casa. depois de passar cego de lágrimas a primeira esquina, prestenção nas travessias, viu filho?! parou ofegante enfocado de luz. encostou no poste. jorrou choros salobros. olhar difratado fixo no chão, imóvel. no breve entre em que enxugou os olhos com a camisa, saltaram do chão pedritas de opaco cintilar. o corpo infante tremeu alegrias de salvação. compulsivamente pôs-se a recolhê-las. bolsos cheios, choro engolido, retomou o caminhar. as britas a ranger com o movimento. suas micas a brilhar na escuridão do oco, sem que ninguém visse. meia hora depois, mas não há precisão sobre esse tempo, chegou em casa. última lição do catecismo, né filho? pronto pro domingo? fez que sim sem falar. temeu que percebesse seu rosto recém chorado. direto pro banho e vamos jantar, viu? antes do chuveiro guardou com cuidado as pequenas pedras. dezessete, contou debaixo da cama. no chuveiro, lágrimas a brotar, água a escorrer pelo rosto. indiscerníveis. pouco comeu do ensopadinho que adorava, era o que diziam. pouco lhe perguntaram, mãe e pai a lamentar os gemidos cancerosos do vizinho. amargor daqueles dias e noites quase. nem escutava, a cabeça impregnada da culpa, ansiosa do martírio absolvedor. hora de dormir! ouviu quase levitando a ordem que sempre carregava de desobediência. beijos sinceros de filho único. reze pro seu anjo da guarda. e não esquece de escovar os dentes, viu? nem botou pasta, apressado que estava. trancou a porta do quarto. apagou a luz e tateou a brita debaixo da cama. ameaçando lacrimejar, sorrindo pra dentro, espalhou pela cama as 17 pedrinhas. deitou procurando a posição de maior dor. rezou pedindo perdão. disse ao todo poderoso que se arrependia de ter matado seu filho na cruz. como lhe haviam lembrado no catecismo. ele, maximum peccatum, não lembrava de algum dia ter lembrado desse terrível lembrado. quando virou de lado um ponto nas costelas agudou de dor. fervoroso, aguentou penitente. só num esgarçado depois, muito depois, compreendeu a dor maior, a difusa e perversa culpa que ali se corporificava nele e lhe perseguiria por toda a vida. a mesma que roubava o viço de sua mãe entre confissões lacrimosas e

Frederico Araujo
Ex-professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dedicou-se desde o final dos anos 1990 a estudos nos campos da epistemologia e da filosofia da linguagem. Desenvolveu junto a seu grupo de pesquisa um modo de proceder a escrita criativa nomeado “transescritura”. Tendo esse modo por referência, vem dedicando-se a criar ficções, algumas delas divulgadas em periódicos ou coletâneas acadêmicas. Recentemente publicou seu primeiro livro de contos intitulado “Escrinvenções Mal Ditas” (Folheando, 2024). Atualmente volta-se também a gerir a Nano Editora Malayerba junto a parceiros de aventuras literárias.
Como sempre muito inspirado. Aprecio a sua sutileza !