Enquanto aguardava o atendente finalizar a instalação do aplicativo Pedro sentia as mãos suarem, esfregou-as na calça jeans desbotada, consultou o relógio e pensou se ainda daria tempo de passar na casa da mãe naquela tarde. O ar gelado da loja aos poucos foi sendo absorvido por seu corpo quente e o que antes era um suor importuno e pegajoso agora circulava por sua pele como uma leve onda de frescor que o arrepiava, proporcionando pequenos calafrios.
Da rua chegava um frenesi de vozes dissonantes. Os carros zurravam numa constante disritmia de motores. As buzinas orquestradas aleatoriamente iam deixando Pedro ainda mais ansioso. Sua dificuldade em entender os procedimentos explicados pelo vendedor era disfarçada por um sorriso meio torto, o que dava a ele um aspecto infantil.
— Pronto, finalizado. O senhor agora já pode usar seu VisTotal com segurança. Só preciso que assine aqui, ó. Perfeito. Muito obrigado por adquirir nosso app. Nós, da Pan Ótico entretenimentos, lhe desejamos as boas-vindas!
Sorrindo, olhos fixos em Pedro, o atendente aguardou em silêncio. Como um títere controlado por mãos bem treinadas, cada movimento seu, do olhar ao modo de falar e sorrir, era feito como se num palco. Pedro, absorto pelas luzes intermitentes da tela do smartphone, agradeceu com frieza e caminhou em direção à rua. Durante o trajeto ele se deixou absorver por aquele caleidoscópio de cores que emanavam da tela e inundavam suas retinas. Instalou os fones de ouvido, sentiu quando o plug se fixou em suas orelhas e sorriu ao ouvir o “Bem-vindo, Pedro!” dito com um sotaque de português europeu.
Sucesso no exterior, o VisTotal estava há pouco tempo no mercado brasileiro, porém alguns comentários positivos e propagandas bem elaboradas despertaram em Pedro o desejo de experimentar a novidade. Mesmo sendo um jovem que se considerava fora de época, ele vinha tentando, nos últimos anos, se adequar melhor ao que a sociedade o oferecia e, ainda que de forma relutante, já havia andado de carro voador, comido carne sintética – cultivada em laboratório – e se encontrado para uma noite de sexo holográfico com uma avatar do seu jogo preferido antes de tomar a decisão de aderir ao VisTotal.
Ele sabia que não seria fácil sentir-se monitorado, por imagem e som, vinte e quatro horas por dia. No entanto, a promessa de ter seu amigo virtual próprio (protetor vigilante, segundo o encarte promocional), que o ouviria e falaria com ele, era tentadora. Mais ainda para alguém como ele, com sérias dificuldades de relacionamentos desde o acidente com o irmão.
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Ouvindo a mãe falar Pedro se perde por entre reminiscências. São imagens vagas e fluidas de pássaros voando que o levam para um lugar no passado onde ele não gosta de ir. A cada movimento que ela faz com as mãos, como quem gesticula e desenha formas desconexas no ar, o rapaz se sente ainda mais perdido. Olha-a com concentração, fixando no pequeno nariz sua atenção, porém nada compreende do que ela diz. Absorto em si, numa espécie de transe, ele não sabe ao certo como agir frente à mãe. Seu desejo é levantar e correr, se afastar o quanto antes dali. Mas suas pernas não o obedecem e ele permanece sentado, olhar vazio a fixá-la.
Quando ela move o corpo para a direita a fim de se ajeitar no sofá ele percebe um pequeno e quase apagado desenho na parede. É um esboço meio torto, composto por algumas linhas já desbotadas, as mesmas que ele e seu irmão fizeram há treze anos, quando tentavam reproduzir com um prego as orelhas enormes (orelhas de abano, Pedro sorri, contido) do padre Júlio. Enquanto o filme da memória, aos poucos, se desenrola, ele reconstrói partes daquele dia: Chovia forte e por isso eles não foram à escola. O pai saiu mais cedo para o trabalho para evitar o trânsito e alagamentos. A mãe os deixou sozinhos porque precisava fazer uma entrega urgente.
Inebriados pela sensação de liberdade, os irmãos passaram toda aquela terça-feira num clima de euforia e excitação. Aproveitaram a ausência dos pais para tomar banho de chuva, atirar pedras nas aves alojadas em seu ninho, feito por entre os galhos da mangueira, e comer pão com açúcar (faziam um furo num dos lados, retiravam todo o miolo e enchiam o espaço com bastante açúcar). Enquanto comiam, sentados no braço do sofá, Pedro retirou do bolso do short um prego e se pôs a tracejar pequenos riscos na parede. De início eram traços aleatórios, aos poucos, porém, ele passou a enxergar formas e as compartilhava com o irmão. Assim, deram vida às enormes orelhas do padre que os havia batizado, casado seus pais e orado pela alma de Paulo.
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A última foto de Pedro e Paulo juntos foi tirada numa noite de inverno, quando eles tinham doze e dez anos. Abraçados e agasalhados, eles haviam chegado há pouco da casa dos avós. Ventava forte e os dois traziam os cabelos desalinhados. Passaram uma tarde alimentada por doces, jogos e brincadeiras, o que explicava a expressão animada de ambos. Seus olhos, como espelhos, refletiam a luz do flash fotográfico e traziam um tom avermelhado, o que dava aos meninos um aspecto irrequieto e travesso. À direita deles, uma janela de vidro deixava ver as grades brancas – instaladas após a fuga de Paulo de um castigo. Não satisfeito com as reprimendas recebidas dos pais, o menino, então com oito anos, pulou pela janela e foi se esconder na casa de um vizinho.
Sobre eles, um halo luminoso, feito auréola, se espalhava pelo teto de madeira e imprimia um traço quase angelical àquele abraço, a contrastar paradoxalmente com a malícia avermelhada impressa nos olhos, formando um misto de anjo e demônio que bem combinava com as muitas peripécias praticadas pelos irmãos nos últimos meses.
Essa foto ocupava, na antiga casa de Pedro, a mesa de centro da sala. Ao seu lado um cinzeiro velho, de um cinza desbotado, com uma das laterais quebradas e algumas pontas de cigarro esquecidas, dava ao ambiente um aspecto amargo e triste, que fazia subir pela garganta de Pedro um gosto acre de passado. Era justo desse dissabor que o rapaz procurava escapar quando, na manhã daquele dia, decidiu entrar na loja e comprar o VisTotal. Quando a mãe se retirou por alguns instantes da sala, Pedro, movido por uma força incontida, pegou o porta-retrato, retirou a foto e a guardou no bolso da calça.
Despediu-se de modo confuso assim que a mãe retornou e saiu da casa apertando a foto contra o bolso desbotado do jeans. Acionou o VisTotal e configurou o app com a foto do irmão. O processo era simples, com o aparelho escaneando em 5D uma foto. A imagem impressa passaria a ser a imagem que o VisTotal daria ao protetor vigilante. Seria esse o rosto que emergiria sempre que o aplicativo fosse acionado no modo presença, aquele no qual, além da voz, o usuário tinha também a seu dispor um rosto. Pedro fora informado pelo atendente que a versão plus one permitia ainda o uso de uma voz específica, porém queria primeiro se habituar com o mecanismo antes de dar esse passo maior.
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Após três anos utilizando o VisTotal Pedro já não era mais capaz de distinguir passado e presente. Passava os dias sozinho, trabalhava de casa, evitava sair, não atendia as ligações dos pais e durante a maior parte do tempo conversava com o app. Instalava as atualizações e aguardava ansioso pelas novas funcionalidades. Depois de relutar, acabou cedendo e permitiu que a voz do irmão fosse absorvida pelo aparelho.
Depois disso ele decidiu, com o consentimento de Paulo, que era hora de se afastar dos pais. Queria viver apenas na companhia do irmão e sabia que apenas se isolando do restante do mundo seria possível atingir esse objetivo. E foi o que fez. Viviam uma rotina simples, com Pedro fazendo as tarefas essenciais na casa e Paulo, em imagem e som, a seu lado, numa mini-projeção holográfica – última das atualizações do sistema plus one life.
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Esconderijo era um eufemismo que os meninos usavam para se referir ao local onde o pai guardava o velho 38. Paulo pensou em usar o revólver para brincar de polícia e ladrão no enlameado quintal. Mas sendo o mais velho, Pedro se vestiu com a máscara da responsabilidade e disse um não seco aos apelos do caçula. Na memória de Pedro, a imagem gravada mostrava os pássaros voando assustados do ninho quando ecoou pelo quintal o som do disparo.

Meu nome é Carlos Henrique, tenho 43 anos, casado com a Katerine, pai do Henrico e professor da rede pública. Vascaíno, gosto de correr e cuidar das minhas plantas.