VICTÓRIA RINCON – Nos olhos de Berenice [conto]
VICTÓRIA RINCON – Nos olhos de Berenice [conto]

VICTÓRIA RINCON – Nos olhos de Berenice [conto]

Hoje eu chovi com o céu.

            Sei quem eu seria se um dia tivesse nascido.

            Berenice veio me visitar essa semana e disse que pareço melhor. Sim, sou a cópia de um rato pelado, Berê! Ela me emprestou o batom. Lembra de quando a gente fez uma turnê? Achei que seria o início de algo.

            Depois de meses de ensaio, o espetáculo é uma consagração. Você já deslizava no palco e eu precisava atuar duas vezes, uma para acreditarem na personagem e outra para não desconfiarem da atriz. Guardo o ingresso da estreia, um encarte da peça e três fotos manchadas.

            Logo eu, que me ressenti quando foi para o cinema, enceno um filme sem tela, de dois protagonistas em um corpo só. O câncer está me matando e eu quero matá-lo de volta. Vamos acabar em briga corporal até que sobre só um de nós. Você vai ver, Berenice, vai sair nos jornais.

            Testemunhar a morte tem sido uma descoberta. Nunca tinha morrido antes. A fraqueza deixa a cena mal-editada, fora de foco, mas agarro as bordas da vida e tento manter a cabeça acima do nível da água.

            Passo muitas horas neste quarto de uma cama sem casal. Dou vez a cada lado da espuma para que se gaste sem preferências e para que exista variação nos dias. Como os alimentos que mandam e tomo os remédios nas horas marcadas, mudo os canais da televisão, sem me fixar, folheio revistas velhas, espio pela janela e penteio a peruca que não gosto de usar.

            Aos sábados, o grupo da igreja vem rezar o terço e ler um trecho da Bíblia. Vários jovenzinhos que se alternam no ofício de visitar Dona Mira, a beata que definha. Uni-me a Deus na faixa dos 35, um som de sino em resposta a sussurros amontoados. Desde então, uso uma aliança prateada e não escuto provocações. A conveniência treinada virou intimidade verdadeira e Deus se tornou a Mãe a quem posso confessar.

            “Quero trazer à memória aquilo que pode me dar esperança” (Lamentações 3:21).

            A torneira da cozinha goteja, apertei o registro e algo rompeu. O pão embolorado repousa e o calendário está dois meses atrasado, sem que me interesse mudá-lo de posição. Acendo um incenso e o vejo queimar. Ensaio uma oração, mas o que pediria?

            Berenice, existe um ressonar mudo que continua quando você vai. Seu marido sabe que esteve aqui? Um dia, você me disse que Antônio é o sofrimento que escolheu. Eu entendo, pois tolero certas dores também.

            Borrifo água nas plantas do corredor, que ficam verdes e sem poeira. Coloco os dedos na terra úmida. Estão bem. Abro as cortinas e a claridade se deita por onde alcança. Berê, você leva para o seu apartamento quando eu descansar?

            Pensar em Berenice é sentir uma delicada perturbação, o trançar da memória com a possibilidade. Quando ela fala, o mundo gira ao contrário.

            Terminadas as apresentações, os meninos arrumavam, cada um, uma mulher da plateia e nós caminhávamos até a pousada. Se fazia frio, os braços se aninhavam e eu sentia seu cheiro de erva doce e colônia rala. Nas noites de calor, dávamos voltas pela cidade visitada. Nunca soube se era reciprocidade ou vaidade o que via em seus olhos quando flagravam os meus.

            Vou até o escritório e ponho as mãos na estante de poucos livros. O espelho na outra parede simula uma companhia. Desafio minha imagem, enquanto elevo o nariz e projeto o queixo. Ainda estou aqui.

            Queria ter netos para dar instruções como último ato. Ouviriam com atenção, pois a palavra de quem sente na nuca o hálito do desconhecido tem um quê de feitiçaria.

            Volto ao quarto em passos lentos, confiando meu peso à firmeza dos móveis.

            Puxo da gaveta uma carta amarelada. Balanço a cadeira e abro o papel, que estala. O dia vai amolecendo e as crianças do bairro chegam da escola. A chuva segue caindo e as roupas no varal nunca vão secar.

            Ligo o rádio. A voz de Rita Lee desata um sorriso.

            “Eu não tenho hora pra morrer, por isso sonho“.

            Berenice, quando você volta com seus olhos de manteiga?


Sobre a autora:

Victoria Rincon

Victória Rincon é contista e está terminando seu primeiro livro de contos. Vencedora do Prêmio “O Fundador”/2014, promovido pela Academia Norte-riograndense de Letras em convênio com o Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo. Autora de contos publicados no Jornal Online do RN.

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