THASSIANE GOULART – Quando o corpo chama [conto]
THASSIANE GOULART – Quando o corpo chama [conto]

THASSIANE GOULART – Quando o corpo chama [conto]

A navalhada do dia fica por conta de Thassiane Goulart. A autora publicou nesse ano o livro Saudade de Casa: relatos de uma desencaixada pela Editora M.inimalismos. Da obra, segue quatro contos.

Revista O Navalhista

Quando o corpo chama

Quando deitou seu corpo cansado sobre o colchão, começou a encarar o teto. Sentiu um vazio cotidiano, aquele que se instaura inesperadamente dentro do peito e faz com que tudo significasse nada. Os diálogos e momentos do dia começaram a percorrer sua memória de forma bagunçada e sem muita importância. Lembranças corriam pela mente se embaralhando. Tentava resgatar detalhes, mas se esquecia e se confundia com momentos passados.

Cansado de tantas vozes ecoando em sua cabeça, decidiu fechar os olhos.

Despretensiosamente, começou a sentir sua própria língua, como se conseguisse perceber grandes partículas de células que se animavam dentro dela e dançassem, passeando pelo céu e pelo chão de sua boca.

Começou a sentir como se círculos se movimentassem sob sua língua, rondando-a como o anel de Saturno ronda o planeta. Percebeu o quão estranho era explicar o que se passava no seu corpo. Sentiu suas pernas e todo o seu corpo sendo percorridos por diversos círculos que se movimentavam incansavelmente. Começou a perceber que, dentro do seu corpo, as veias estavam a todo vapor, circulando o sangue, que ele sentia correr sem parar. Seu pescoço começou a palpitar, assim como seu coração. Ao tomar consciência da existência de seu corpo, foi inundado por um medo, um pavor que o cobriu de desespero, fazendo com que abrisse os olhos e tentasse lembrar dos acontecimentos sem valor que ocorreram no seu dia.

Tentou se apegar a essas memórias e esquecer suas sensações, mas ainda conseguia sentir sua língua formigando de uma forma desconfortável e sistemática até adormecer.

Acordou pela manhã em um pulo, se arrumou e saiu de casa para cumprir o esperado e planejado há muito tempo por outras pessoas, aquilo que deveria fazer. Focado em seus compromissos, aliviou-se por não ter mais o contato com o corpo como havia sido na noite anterior. Entretanto, percebeu que a língua ainda dava uns estalos, como se pequenas bolinhas estourassem dentro dela. Algo desconfortável, mas que dava para ignorar ao decorrer do dia, apesar de em certos momentos ser pego pela percepção inconveniente de que sua língua ora estalava, ora borbulhava.

Ao chegar em casa, só conseguia sentir o cansaço em todas as partes do seu corpo. Deitou-se novamente e encarou o teto, lembrando de todos os acontecimentos do dia. Sentiu sua língua borbulhar com maior intensidade. A sensação começou a lhe assustar, pois não havia nada que pudesse fazer para evitá-la.

Fechou os olhos para tentar dormir e, dessa vez, percebeu os dedos dos pés. Percebeu a interlocução que eles faziam uns com os outros e como se esticavam. Começou a movimentar os dedos mesmo sem saber como conseguia fazê-lo, e se divertiu com o sentimento que essa movimentação provocava. Involuntariamente, deu um pequeno sorriso instantâneo, o que o fez sentir seus lábios. Seus dentes bateram um no outro, levando a língua a borbulhar mais intensamente. Seu coração começou a acelerar; nunca havia acontecido algo assim antes. Então fechou os olhos com força, na esperança de que tudo parasse. Entretanto, esse ato o levou a sentir suas pálpebras, e ao sentir as pálpebras, pôde sentir seus cílios tocando sua pele. Isso o fez notar sua bochecha, que estava queimando, e, mais uma vez, notou sua boca, onde sua língua borbulhava.

Ao acordar pela manhã, estava um pouco mais relaxado. Ainda conseguia sentir seu corpo quase que por completo. Foi invadido por uma tremenda calmaria mental e corporal, como se o cansaço tivesse sido aniquilado, e sentiu-se presente. De repente, deu-se conta de que não queria ir para o mesmo lugar onde ia todos os dias. Nunca havia pensado sobre seu desejo de realização. Foi tomado por uma súbita vontade de continuar sentindo seu corpo, para entender cada detalhe dentro dele. Porém, ficou boquiaberto com sua vontade se manifestando; nunca havia pensado algo tão absurdo e sem nexo como isso antes. Suas bochechas coraram de tanta vergonha, e, tomado por uma culpa arrebatadora, levantou-se em um pulo. Sentiu seu corpo se enrijecer novamente e saiu de casa com tanto afobamento que deixou de lado qualquer sensação presente no corpo. Sua língua formigava, mas ele fingia não sentir e foi cumprir suas tarefas como esperado, logo voltando a agir como se não tivesse um corpo.

Esforçou-se tanto para reprimir cada sentido que logo sua língua já não formigava mais. Quando se deu conta de que estava desligado e “curado”, sentiu um imenso alívio. Conseguiu realizar as tarefas cotidianas sem dificuldades, sem sentir nenhum incômodo corporal. Era como se tivesse tomado uma anestesia; nem ao menos tinha consciência de que estava vivo, apenas reproduzia uma série de movimentos e pensamentos, simplesmente reagindo a estímulos freneticamente.

Ao chegar em casa, começou a sentir seu corpo dolorido. Veio a ele todo o cansaço acumulado da cabeça aos pés. Deitou-se e respirou fundo. Começou a esperar o sentimento de alguma parte do seu corpo retornar, mas dessa vez, não sentiu nada. Tentou perceber suas mãos, movendo-as para cima e para baixo junto com seus braços, mas não conseguiu senti-las. Era como um movimento automático realizado por outra pessoa que o controlava. Até pensou em mexer sua cabeça, mas o pensamento se manteve no campo mental. Seu corpo estava completamente silencioso, imóvel e sem muito a expressar. Entristeceu-se ao perceber o oco que o habitava, mas tentou ignorar a decepção e fechou os olhos para dormir.

Ao acordar, não pensou em seu corpo. Automaticamente, levantou-se e saiu para realizar suas tarefas. Apenas no meio do dia lembrou-se de sua capacidade de sentir, que havia se manifestado recentemente. Esforçou-se para tentar sentir qualquer parte do corpo, mas não conseguiu.

Foi quando voltou para casa e se deitou. Novamente, encarou o teto e contemplou o nada. Tentou recordar o que viveu durante o dia, mas não conseguiu. Pensou em voltar a sentir alguma parte do corpo, mas também não conseguiu. Tentou se lembrar de como era estar consciente dele, e sentir, mas falhou novamente.

Desistiu de tentar qualquer coisa e fechou os olhos para dormir. Foi quando sentiu algo molhado em sua bochecha. Estranhou. Então levou a mão ao rosto e sentiu a umidade nos dedos. Deu-se conta de que lágrimas escorriam de seus olhos e ficou boquiaberto ao sentir seus olhos se encherem de água, e depois a água escorrer sobre seu rosto. As lágrimas caíam desenfreadamente. Sentiu um nó tomar conta de sua garganta. Encolheu-se como se fosse entrar em um casulo. Começou a sentir o peso de viver em seu corpo e as “ferrugens” se contorcerem dentro de si. Seus olhos se fecharam, e ele pôde ouvir seus soluços desesperados por um longo tempo. Chorou como um bebê, abraçando seu próprio corpo, até sentir o ar que estava prendendo se soltar devagar, dando entrada à possibilidade de respirar. Abriu o corpo novamente e sentiu as lágrimas secando em seu rosto. Sua língua começou a formigar de novo. Capturou a próxima gota d’água com a língua e sentiu instantaneamente o salgado da lágrima em sua boca. Seu corpo todo se arrepiou. Ouviu as batidas de seu coração e sua respiração, enquanto acompanhava o movimento de entrada e saída do ar. Acompanhou sua respiração até pegar no sono.

Ao acordar, espreguiçou-se, despertando cada ligação corporal, e se esticou de uma forma que parecia que iria se expandir. Encarou o teto e pensou nas atividades que teria de realizar no dia, mas não queria ir. Imaginou o corpo que conhecera ontem, angustiado por tomar todas aquelas ações, ter que realizar tais coisas. Sentiu-se angustiado por ter que passar por isso. Pensou em se levantar e ir, mesmo contra sua vontade, até que sentiu todas as células do seu corpo se agitarem. Sentiu que circulavam de um lado para o outro. Sua língua borbulhava intensamente, e o sangue corria depressa em seu corpo. Seus dedos começaram a se mexer involuntariamente, todos acordando de forma coletiva de um sono profundo, como se há muito tempo quisessem aparecer. Agora, todos juntos, corriam pela casa, como crianças brincando em um enorme quintal.

O garoto não conseguiu ignorar a festa que ocorria dentro de si. Decidiu que ficaria para participar. Fechou os olhos e começou a se escutar.


Sobre a autora:

Thassiane Goulart

Me chamo Thassiane Goulart. No momento em que escrevo isso, tenho 22 anos, moro na cidade São Paulo e sou autora do livro Saudade de Casa: relatos de uma desencaixada publicado pela editora M.inimalismos. A vida até então, tem sido uma incessante busca por um local onde eu pertença, onde seja capaz de me encaixar. Até agora, pulei de um lugar para o outro na tentativa de um dia me encontrar. Em meio a tantas mudanças inesperadas, minha única constante é a escrita. Ela aparece em momentos que menos espero. Mesmo quando tenho dificuldade de reconhecer minha alma, mesmo quando meu coração parece incapaz de sentir, ainda assim, sou surpreendida pelo surgimento de palavras que revelam sentimentos misteriosos que nem sabia que existiam, desvelando uma intensidade assustadora e não tão óbvia. Escrever é a única coisa que faço de verdade e me faz sentir como se existisse. escrevo desde que me conheço por gente. Algumas vezes, posto o que penso/sinto no instagram, através da página @desocultase.

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