No princípio, Ivandro Menezes abre Sangrem os porcos, depenem os frangos (Editora Moinhos, 2018) com o conto “No princípio”. Inspirado no livro de Gêneses, lá está Deus e suas cópias bípedes e imperfeitas. Desejosas e sanguinárias. Eis que Deus desaparece do resto do livro, deixando suas cópias Made in China à mercê de suas pequenas tragédias cotidianas.
Um pai de família alimenta a estatística do desemprego e encontra como saída a prostituição do corpo para colocar comida em casa. Um moleque, apenas menos malandro que seu destino, vê sua sorte mudar da água pro vinho e do vinho pro sangue, em “Para vidas simples não se erguem mausoléus”. “Como qualquer ser humano, era cheia de contradições”, diz a narradora sobre a própria mãe no conto “Já te disse que mamãe era sádica?”. Uma senhora altruísta que encontrava prazer em bater suas filhas.
Vamos analisar de perto um conto em que essas contradições são levadas ao extremo. Beiram ao absurdo. “Cheguei em casa e ela disse, matei as crianças”, inicia Ivandro em “Canção”. A primeira observação é uma pergunta: quem conseguiria largar a leitura após essa martelada inicial? Impossível. Queremos saber quem é essa mulher, o que aconteceu, qual a reação de quem chegou em casa. A reação lembra a de Meursault ao receber a notícia de que sua mãe havia morrido, em O estrangeiro: indiferença frente ao absurdo assolador. Para além da apatia do personagem de Albert Camus, os personagens de Ivandro Menezes gozam do absurdo, no absurdo. Tudo tão suave. Tão leve. Como se ouvissem uma canção.
Importante observarmos a ideia de “aberto está o inferno”, termo que Marcelino Freire pega emprestado do título de um livro de Antonio Carlos Viana, sergipano que figura entre os melhores contistas de nossa literatura. Assim como na maioria dos contos, quando o leitor entra no texto, o inferno nosso de cada dia já está ali no primeiro parágrafo. Está aberto, quase palpável.
As narrativas de Sangrem os porcos, depenem os frangos são curtas. Muito me interessa o poder de concisão do autor empregado neste livro. Li o conto “Três meia zero” com empolgação. Em três folhas, Ivandro consegue armar o drama de uma dezena de personagens em uma rede, lincando de forma convincente e precisa as desgraças de cada um. Ao final, temos uma teia. Uma história.
Os temas abordados dizem muito de nossos dias. E desconfio que vai continuar dizendo por um bom tempo. Infelizmente. Milícias. Feminicídio. Relação cidadão de bem/igreja. Intolerância a comunidade LGBTQIA+. Tantas outras barbáries que poderíamos encontrar agora mesmo no feed de nosso Instagram. “Bom mesmo era na ditadura, tinha ordem, tinha respeito. Não era essa putaria que tá hoje em dia!” Ou ainda: “Quer direitos humanos? Seja um humano direito. Taí minha filosofia.” Sangrem os porcos, depenem os fragos segue atual não só por isso, mas pela pungência de construções concisas e inesquecíveis.
*Publicado inicialmente em nosso site anterior, chamado Literatura & Outros Blues, no dia 21/10/2021.
Sobre o autor:
Ivandro Menezes nasceu em Mamanguape, interior da Paraíba. É professor da Universidade do Estado da Bahia e estudante de Sociologia. Publicou contos e resenhas em sites literários como LiteraturaBR e Appaloosa Magazine.