DINA DOMINICK – O que dizer sobre estas criaturas
DINA DOMINICK – O que dizer sobre estas criaturas

DINA DOMINICK – O que dizer sobre estas criaturas

–  Esta é diferente das outras.

–  Desculpe, o que disse?

–   Estou reproduzindo aquilo que ouvi quando apanhei o carro pra trabalhar. O senhor não está sabendo sobre a nova criatura? – Perguntou com ar de mistério, sondando os olhos do passageiro através do retrovisor.

–  Por que diferente?

–  Bem, não confirmo nada. O rumor que circula é este: meus colegas comentaram algo sobre o cheiro, um cheiro de flores, suave, me entende? – Disparou a buzina, reclamando do veículo que freara de súbito à frente do seu. – É o que eu digo: não é só chuva e acidente que embolam o trânsito. Olha! Tudo travado, quarteirões inteiros. E essa agora! Seu desgraçado! – Levou metade do corpo para fora da janela, esboçando gestos obscenos.

A mocinha fechou o livro e buscou a mão de Francisco.

–   Melhor a gente não conversar sobre esse assunto. A garota pode se assustar – disse o motorista. – Cadê a sua mãe, querida? – Retesou o corpo na poltrona e investigou novamente o retrovisor.

–  Somos só nós dois – retorquiu Francisco.

–  Dia difícil! A sua filha vai chegar atrasada à escola. Sempre que isso acontece, a cidade para. Estou me acostumando. Não suporto é o barulho das sirenes!

–  Você sabe exatamente onde foi? – Perguntou Francisco.

–   Menos de um quilômetro à frente. Provavelmente o fluxo vai desembaraçar daqui a pouco. Logo, logo os xeretas se dispersam, pois, segundo contam, essa não é a mais perfeita que já brotou. Muita água no corpo. A gente não pode acreditar em tudo, tem fulano exagerando, mas um detalhe me impressionou bastante… – Ao sinal de Francisco, o motorista prosseguiu. – Já que o senhor permite, a recente criatura é um pouco menor, porém, quando foi encontrada, o corpo apresentava formas maduras e poderia crescer mais rapidamente que qualquer uma delas, se não fosse o excesso de líquido. A conclusão, eu lhe digo: entraria na fase adulta em poucos dias. É o que o povo narra. O povo, a TV. Não viu o noticiário agorinha? O senhor tem cara de gente importante, estudada. Deve conhecer do assunto.

–   Sem cerimônia, cravou os olhos no passageiro.

–   Sou professor – esclareceu Francisco, secamente.

–   Tem o jeitão mesmo. – E despejou sobre a buzina a sua impaciência – Professor de matemática?

–   Biologia – corrigiu Raquel, de imediato.

–   Claro, claro! A profissão da moda.

–   Um clima de guerra! – Avaliou Francisco, contrariado, enquanto as viaturas pediam passagem.

–   Reforçaram a segurança no local – esclareceu o motorista –. O caos! Não sei por que demoram tanto para remover essas criaturas aos laboratórios. Até onde eu sei, a polícia foi chamada de madrugada, mesmo antes dos cientistas.

–   Desnecessário – interveio o passageiro, franzindo o cenho.

–   Sim, mas também, não. Entende?

–   Não, não entendi.

–   Eu explico: dizem, dizem, ok? Pelo zum-zum-zum, estão garantindo uma hipótese: a coisa poderia procriar, caso sobrevivesse. Se, se sobrevivesse. Me entende? Agora, de que a criatura possa ter a competência para falar, disso eu não duvido. Vazou informação. Não tem segredo: algumas se manifestaram em uma linguagem incompreensível, apesar de se comunicarem no máximo entre elas. Me relataram assim. Todas elas, débeis, inofensivas, concordo com o senhor, porém a novidade, isto é, a capacidade de procriação, deve ter prevenido a polícia. Sabe como é: se essas criaturas crescessem em um ritmo aceleradíssimo, vingassem e se reproduzissem… não sei, não! Tem trouxa afirmando que a procriação já se dá faz muito tempo. Procriação… – sorriu ironicamente. – Vai ver eles escondem as crias. Será? O senhor é biólogo, não deveria me confirmar a tese? – Entortou o pescoço e encarou o passageiro.

–    Consegue encostar o veículo e nos deixar por aqui?

–    Certeza? Olha a multidão! O senhor mais a garota naquele tumulto… não aconselho. Eu havia planejado, justamente, tentar um desvio no próximo quarteirão e pegar um caminho alternativo para chegar à escola.

–   Francisco e Raquel deixaram o veículo. Furaram os bloqueios da aglomeração, ouvindo versões de toda sorte sobre o caso. Alcançaram o cordão de isolamento.

–   A manhã avançava, muito fria. O céu, um pesado cobertor acinzentado, contrastava com o colorido intenso dos trajes dos profissionais encarregados de guardar o local. Francisco identificou-se a um deles e levou consigo a mocinha para o interior da tenda fechada.

–   Dentro de um recipiente redondo, suficiente para acomodar um bebê recém-nascido, padecia o estrangeiro, um ser translúcido e inchado. Olhos embaçados piscavam em intervalos longos. O corpo respirava suavemente, dando a impressão de ressonar e atingir estágios profundos de inconsciência.

–   Raquel abandonou as luvas e segurou as mãozinhas cristalinas e úmidas, sentindo aflorar dali uma tímida oscilação de calor como resposta ao toque. Sonidos breves e melodiosos emanaram daquele organismo, embebidos em vapor dulcificado, que se espargia.

–   Sob o revestimento despigmentado, opaco e firme, que envolvia o corpo, escorria uma essência azulada por vias finíssimas. Os tons de azul se esvaneciam. A cada minuto, mais pálidos. Finalmente, dissiparam-se por completo e tornaram a seiva imperceptível.

–   Vamos pegar o livro, Raquel. Foi o que prometemos à sua mãe – confortou-a Francisco.

–   Comovida, ela retirou o objeto da mochila presa às costas:

–   Qual poema desta vez?

–   Escolhe você.

 

Sobre a autora:

Dina Dominick

Dina Dominick é de Belo Horizonte, graduada em Letras pela UFMG. Produz conteúdo sobre literatura através do perfil no instagram @dinamariadominick. Tem contos publicados no Jornal Relevo, na Revista Artes do Multiverso e em coletâneas da Editora Selo Off Flip. A Outra Mulher, lançado pela Editora Nauta, é seu livro de estreia.

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