WILLIAN ELOI – Os Mascarados
WILLIAN ELOI – Os Mascarados

WILLIAN ELOI – Os Mascarados

Quando foi que aquilo começou? Há muito, muito tempo. O mundo se dissolvia, como uma grande ilusão. Ali era o único canto onde não havia mascarados. Onde estariam a salvo. O único lugar onde a falta de ar se daria apenas pelas bocas coladas uma noutra. Onde beijos e abraços não transmitiriam mais do que calor e umidade. Tampouco importava a ela o odor que subia da pia. Ele a chamava, e ela estava ali. Um amálgama de pele, de músculos. Às vezes tinha um nome, um rosto. Às vezes, não. Era perfeita, ainda assim.

Do peito, desceu os beijos até a altura da cintura. Ele, temendo de repente a vertigem, segurou-lhe a cabeça com firmeza. Então ela emergiu à superfície. A água ainda escorria, dos cabelos às costas. Ele gostou do que viu. Ela sabia. Ele se aproximou. Sentiu a rigidez daquele quadril e quis para si. Lentamente a invadiu, e foi invadido por ela.

A face contorcida em espasmos, a respiração ofegante. Está tudo bem? Os gemidos, uma espécie de reação às estocadas de algum punhal. Está tudo bem? As batidas à porta. A água caindo do chuveiro há um bom tempo. Por que não responde? Por que não responde?

Já terminei, disse, enfim, entre soluços.

O mundo-tumor se fazia ouvir do outro lado da porta. Assinalava na palma de sua mão. Líquido pegajoso translúcido. Deixava que seu odor escapasse pela pia do banheiro. Deixava-se sentir debaixo dos pés, escorregadio, e nos cantos da parede. Raios amarelos entravam pela pequena janela aberta. O sol nunca mais brilhou como antes.

***

Os mascarados estão amontoados, uns sobre os outros, discursando, temendo por seus empregos. Alguns ali nem isso têm mais para temer. Ninguém dá a mínima para a distância nem para a chuva que começa a cair. Todos querem receber. Alguém espirra na fila. Gotículas caem sobre seu pescoço. A pessoa às suas costas se desculpa. Com a máscara abaixo do queixo, sorri, mostrando as gengivas. Não fosse a brutalidade do espirro, pouco haveria diferença se as gotas que caíram nele haviam saído daquele nariz largo ou se era Deus mijando sobre sua cabeça

Um dos mascarados diz que o vírus foi criado pela imprensa. Outro, afirma que foram os comunistas. Uma mascarada diz que a ciência não é maior do que Deus, enquanto a fila se desloca poucos centímetros, com sofreguidão. A chuva aumenta de intensidade, molhando os recibos de conta que ele havia levado para pagar. As pessoas que passam de ônibus ou de carro, outros mascarados, os veem ali. Colocam suas cabeças para fora. Quando será que as equipes de TV virão nos filmar?, pensa.

Limão, alho e mel que você fica bonzinho. Na minha época nunca existiu isso. Fui criado assim. Ninguém morria de gripe.

Os mascarados creem em bruxarias.

Um homem, que havia dormido na calçada guardando lugar na fila, descobre que não poderá receber. Inconsistência nas informações. Ele não se conforma. Empurra o funcionário que veio organizar a fila. Chuta o vidro da agência. Os vigilantes são acionados. Conseguem, a muito custo, contê-lo. A polícia chega em seguida. O homem é levado no camburão. Uma jovem chega com uma criança no colo. Consegue uma vaga na preferencial. Pelos olhares cerrados dos mascarados, eles a estrangulariam. Ela e a criança. Outra mulher chega e toma o seu lugar na fila, na entrada do banco. Não podiam provar, mas alguém afirmava que a jovem mãe havia vendido o canto.

Desculpe, falou ele, por trás de uma porta de vidro, com a voz abafada por sua máscara, mas, infelizmente, o senhor não vai conseguir receber esse dinheiro. Houve um erro de digitação, talvez no seu cadastro, por parte da empresa onde o senhor trabalha. Infelizmente, o senhor vai ter que esperar. Eu sinto muito.

Outro dia, alguém deu como receita a ingestão de desinfetante ou seu uso diretamente nas veias.

Talvez não fosse má ideia. Como limão, alho e mel.

***

Te falei da Sônia?

Por que ele deveria saber daquilo? Qual seu interesse em saber de uma notícia como aquela? Àquela hora da manhã, enquanto tomava seu café? Ela o dizia lá da porta da cozinha, enquanto lançava fumaça no ar. Em um de seus pulmões havia uma fibrose, sequela de uma antiga pneumonia. Ela tinha medo do contágio. Mas não deixava de fumar seus cigarros baratos cheios de aditivos químicos, nem de apelar também para as guimbas.

Ele olhava para aqueles olhos, para aquelas pálpebras caídas, escuras, e procurava a mulher com quem um dia se casou. Talvez, da mesma forma que ela o observava e procurasse na falta de alguns fios de seus cabelos — e nos fios cinzas que sobravam, cada vez mais cinzas — o homem que um dia ele foi. Tentando compor um quadro antigo, como faz um restaurador, usando apenas como referência o pouco do que lhe sobrou, enquanto o tempo não transformava tudo em pó.

Ela estava com a mania muito grande de, além de passar álcool, passar sabão…

Normal, respondeu, entrecortando-a.

Sim, mas a todo momento?

Bem, ela estava com essa mania de a todo momento usar álcool e sabão. Às vezes, detergente. Usava muito mesmo. Até que ela percebeu a mão descamando. Depois, noutra semana, foi ficando vermelha. E coçava. Aquilo foi deixando ela louca. Pensou que poderia ser…

Mas os sintomas não são esses.

Eu sei, eu sei. Mas cada um que diz uma coisa a cada dia. Ninguém sabe mais nem no que acreditar…

As pessoas estão enlouquecendo…

O rosto dela começou a coçar também — ela achava que havia passado para o rosto, então começou a coçá-lo. Coçava, coçava. As unhas começaram a vir com pedaço de pele. O rosto infeccionou. Tá todo inchado. Tá tomando antibiótico.

Ela deveria procurar um psiquiatra. O que você tá fazendo?

Tô procurando umas guimbas que joguei no quintal.

Animal nenhum deveria ficar preso, pensou, enquanto olhava para o filho, uma criança, já esgotada. Melhor seria a morte. Só o pássaro, que criavam em uma gaiola, só a ele parecia haver motivos para cantar dentro daquela casa. E por que cantam os pássaros presos? Alguns afirmam que é de tristeza. Outros, para passar o tempo gastando a energia que deveriam usar na busca por comida. Sem que o vissem, aproximou-se da gaiola. O pássaro se debatendo na grade de um lado a outro — como sempre fizera — ele colocou a mão pela portinhola e o agarrou, observou-lhe a agonia entre seus dedos, na palma de sua mão, depois lançou-o ao ar. Ao filho e à esposa, disse que, enquanto colocava comida, o pássaro escapou.

Passaram-se dias até que encontrou o pássaro que havia libertado. Estava próximo à gaiola. Não tinha dúvidas, pois era a mesma espécie, e havia um sinal de nascença em uma das penas. Aquilo o deixou encabulado. Talvez não tivesse chance lá fora, não soubesse mais como obter comida. Fora aleijado. Talvez fosse como alguns presos, que mesmo tendo cumprido sua pena, postos em liberdade, voltavam a praticar delitos. Tinham se tornando, por assim dizer, patologicamente irrecuperáveis. Quando tudo isso acabar, o que seremos? Para onde retornaremos? Pensou. Pegou o pássaro. Colocou-o de volta à gaiola.

***

Até que houve o caso da jovem violentada.

No início daquela semana, já davam notícias de alguns saques registrados em algumas cidades do país e o aumento recorde no número de mortes. Não havia mais corredores à frente da linha de chegada. Só números a serem quebrados. E a velocidade era tamanha que ainda havia tempo para sorrir para uma foto, porque os outros competidores estavam a uma distância a perder de vista. Traumatizada, a garota não soube muito o que dizer, dar maiores detalhes do caso em que foi vítima. Lembrava apenas que o criminoso usava uma máscara.

Os mascarados passaram então a desconfiar uns dos outros. Vigiando cada atitude que consideravam suspeita. Alguns passaram a estocar comidas, outros, andavam armados. Quem poderia confiar em uma pessoa que esconde o rosto? Falou um deles dando o general como exemplo de alguém que tinha a coragem de enfrentar a coisa ali, cara a cara. Isso não existe! Isso foi inventado! Se não fosse por conta dessas máscaras, agora nós saberíamos quem foi!, bradavam. Então encontraram o culpado. Um homem que andava por ali a revirar latas de lixo na companhia de seu filho em uma carroça velha.

Foi ele, com certeza! Já o vi aqui um dia olhando para nossas casas!

Ele tem o costume de bater palma e pedir esmolas.

No mínimo era para saber se tem gente, disse outra pessoa.

O filho da puta deve ter aproveitado que a garota estava só e estuprou ela!

Mas isso não vai ficar assim não!

Um dia um mascarado o viu de longe. Ligou para os outros. Resolveram atocaiá- lo.

O homem parou em frente a uma das residências. Revirou o cesto de lixo, como de costume, enquanto o filho o aguardava sentado, na carroça. Um dos mascarados abriu o portão de sua casa, com uma das mãos às costas. O homem que revirava o lixo parou e o fitou. Ficou sem jeito. O mascarado percebeu que o carroceiro não usava máscara, assim como o filho. Esbouçou uma expressão amigável através dos olhos, enquanto os outros mascarados se aproximavam, cada um com uma das mãos também às costas.

Percebi que o amigo não usa máscara. Não tem medo de se contaminar?, indagou o mascarado.

O homem respondeu:

Quem vive nessa vida tá sujeito a tudo, num sabe? Tenho medo não. Se tiver de morrer, Deus é quem sabe da hora. Mas eu tenho, sim, uma máscara, senão num consigo entrar nos cantos… não me deix..

Antes de terminar a frase, uma paulada lhe atingiu nas costas. O garoto gritou, pulou da carroça para acudir o pai, mas foi contido por outro mascarado. E nem seus gritos e nem os gritos de seu pai, pedindo misericórdia, foram suficientes para impedir a fúria dos porretes e barras de ferro, quebrando ossos e espalhando sangue. E tamanha era a fúria dos mascarados que se abateu sobre aquele homem no chão que até a besta que carregava a carroça fugiu assustada. E, no final, quando os mascarados o libertaram, o garoto caiu sobre aquela massa amorfa de carne e sangue, impossível de se reconhecer, seu pai.

A notícia do linchamento se espalhou no mesmo dia, porém, não encontraram os culpados. Ninguém conseguiu reconhecê-los.

Todos estavam de máscaras.

***

Já há alguns anos vinha percebendo o quanto estava sendo difícil viver ao lado dele. Agora, tinha certeza, o quanto seria duro morrer. Você tá me escutando? Disse para lembrar-lhe do sangue que havia encontrado em seu escarro, pela manhã, e para o qual não dera a menor importância. Você agora parece que vive em outro mundo. Mesmo quando você está comigo, me sinto só. Ele esteve a ponto de lhe dizer que sim, que ultimamente anda no melhor dos mundos, dentro daquele banheiro, todas as vezes que tomava banho. Porém, preferiu ficar calado. Tomando seu café.

Depois da garota violentada, dos saques e dos surtos de violência, soldados passaram a patrulhar as ruas para conter os mascarados. Uma junta militar se instalou, de forma interina, e assim tentar estabilizar o caos nas ruas. Porém, as mortes não cessavam. Os boatos, agora mais fortes, davam contam de que talvez “a coisa” tenha sido mesmo criada em laboratório. E que agora, confinados, dariam eles, os mascarados, o toque final, já que só podiam amar uns aos outros em tese.

Não era incomum que pais espancassem seus filhos, e maridos, suas mulheres. Ricos cometiam suicídio pelo tédio de tudo ter. Pobres, por um prato de comida matavam ou morriam.

Por que você não colocou o molho do jeito que te mandei, seu satanás?, bradava um dos vizinhos, um pastor, do outro lado da parede. Por que você não pode me obedecer? Você tá com algum demônio no couro que não me escuta? Perdão, esposo, perdão e… De repente, o barulho de mesa e de talheres ao ar.

Ele sabia o que ia se seguir. Deixou a xícara sobre a pia. Pegou o controle e ligou a televisão, num volume alto, para que seu filho não escutasse aquilo que acontecia do outro lado da parede.

Coveiros, em alguns estados, já são insuficientes. Já se discute, inclusive, o uso de retroescavadeiras.

Por favor, não, por favor, esposo, não!

Aumentou mais o volume.

É pra você aprender!

Estilhaços de vidro no chão e movimentos. Como gato e rato.

Nãããooooo! Socorro! MEU DEUS, ME AJUDE!

Muda o canal e aumenta o som da televisão.

Nem a presença dos soldados intimidou os mascarados, que, famintos, levaram tudo o que puderam do supermercado. O segurança do supermercado, que também estava armado, tentou reagir, mas não foi suficiente…

E novamente.

Do outro lado da parede, o som de baques surdos que a faziam estremecer. E nem o volume alto da TV impedia que se ouvisse aquilo. Mesmo assim, ele continua a aumentar o volume, e a passar os canais.

Fala-se em canibalismo em algumas regiões do interior do Nordeste.

Não… Meu Pai, chega aqui, Senhor…

Sua vadia!

Mais alto.

Um pai teria comido o próprio filho, morto de inanição.

A criança tapa os ouvidos. Sua esposa está lá fora. Ocupada em morrer, escarrando sangue.

Até que as pancadas no outro lado da parede cessam.

Ester? Ester?

Não houve resposta.

***

Um dia decidira, por conta própria, mantê-la isolada no quarto. Para o bem da criança e dele, que ainda era o único que estava em condições de prover-lhes o sustento, explicou. Ela entendeu e concordou. Já havia perdido peso, tinha febre, e as tosses secas não cessavam, assim como o sangue. Além do mais, os hospitais estariam lotados. Não haveria muito o que fazer. Apenas esperar em casa, é o que lhes diriam. Então todos os dias ele abria a porta e, rapidamente, sempre de máscara, estendia-lhe o prato. Pedia os lençóis sujos, toalha, peças íntimas, e lhe entregava os que estavam higienizados e limpos. Não falava muito, como de costume. Apenas quando ela lhe perguntava, por trás da parede: Que dia era hoje? Era dia ou noite? O garoto já havia se alimentado?

Quando queria lhe informar sobre algo que não pudesse dizer em voz alta, por conta das paredes conjugadas, bilhetes por baixo da porta:

 

Consegui um trabalho fabricando álcool em gel. A coisa não é legal, se assim posso dizer, mas não posso me dar ao luxo de escolher. É uma mistura. Não se preocupe, vai dar tudo certo.

Então ela escrevia em outro bilhete, passado também embaixo da porta.

Ok. Tome cuidado.

Assim passavam-se horas até que ele chegasse. Deixava tudo pronto para o garoto. E ela, lá da cama, mesmo cansada, pela falta de ar, não conseguia dormir. Atenta ao que o garoto fizesse, do outro lado. Comunicando-se com o menino, do outro lado da parede. Orientando-lhe no que fosse preciso. Para passar o tempo, enquanto seu esposo não chegava — também para tentar driblar a ansiedade da falta de cigarros — observava os ratos que iam e vinham. No começo, assustou-se com suas sombras. Depois, foi se acostumando com aqueles chiados. Lembrou de Cinderela e deu a cada um deles um nome. Como foi o dia de vocês, meus amigos?, perguntava.

Como deveria estar a vida lá fora?, pensava. Dali daquele quarto não podia saber muito, além dos eventuais sons de sirene. Mas por aquela parede ouvia desde o ronco de um peito cansado a peidos sem cerimônias e gemidos. Nesse momento lembrava que há meses seu esposo não a procurava. Bem antes dos escarros de sangue. No início imaginou se tratar de uma amante. Depois entendeu que se tratava de preocupação. Então escutou, da parede, um outro caso de violência sexual. Agora envolvendo uma menina de treze anos. Novamente um mascarado. Aquilo a deixou apavorada. Se o esposo continuasse saindo, como poderia se defender? Ela, uma tísica. Ou coisa assim. Como poderia defender seu filho de um monstro? A parede lhe confidenciou que, mesmo menor em força e tamanho, a garota, que andava com uma faca escondida, atingiu o rosto do abusador mascarado, marcando-o. A mulher esperou o esposo chegar, trocar os panos sujos por outros panos, limpos e higienizados. Esperou colocar o prato de comida. Então, enfiou um bilhete por baixo da porta.

Soube da menina que foi estuprada? Eu tenho medo. Estou com muito medo de ficar só com nosso filho. De saber que algo assim anda à solta.

A reposta demorou mais do que o de costume.

Outro bilhete debaixo da porta dizia:

Abra, mas não faça nenhum espanto. Está em frente à porta do quarto, no chão.

Quando ela abriu a porta, no chão, havia uma caixa. Ela pegou e trouxe para junto de seu peito. Já sobre a cama, abriu a tampa. Encontrou um outro bilhete dobrado, e algo envolto num pano. Tocou. Era rígido e pesado. Apesar da curiosidade pelo embrulho, leu logo o bilhete, que dizia assim:

Sim, fiquei sabendo da garota, mas não quis lhe dizer, para lhe poupar — por isso estou evitando ligar até a televisão. Você precisa de descanso. Você não faz ideia de como estão as ruas. Ambiente muito perigoso. Há muitas histórias por aí. Saio todas as noites, e você não imagina, você não faz ideia do que estão sendo capazes.

 

 Dentro desse embrulho há uma arma. Está carregada. Se você perceber uma movimentação estranha, alguém tentando arrombar nossa porta enquanto não chego, atire. Atire para matar.

Quando leu esse trecho, assombrada, levou a mão à boca. Então continuou.

Talvez não precisemos chegar a esse extremo, mas devemos estar preparados para tudo. Venho conseguindo me manter vivo e nos manter — e só Deus sabe como não enlouqueci. Não me perdoaria se algo lhe acontecesse ou ao nosso filho. Consegui comida. E alguns remédios para você.

Cuidadosamente abriu o pano que estava dobrado e, no fundo, lá estava. Sentiu o cabo em sua mão e apoiou o dedo no gatilho frio. Observou o desenho das linhas que iam até o cano e estremeceu. Ele, que nunca foi a favor de armas, como conseguiu, pensou. Mas não importa. Parecia estar tão focado em viver, em protegê-los, que saiu do torpor em que se encontrava até então. Ela apontou para um dos ratos e pensou: Acho que não dever ser tão difícil. Se ele vem se esforçando todas as noites para nos proteger, também o farei. Farei o que preciso for.

Gostei do presente. Mas preciso praticar.

Acho que essas coisas se aprende rápido, enviou a ela sua resposta, ao mesmo tempo em que ria, do outro lado da porta.

Com o passar do dia, ela ficava mexendo no seu brinquedo. Descobriu, de repente, que há um local na lateral do revólver em que se apertando destrava-se o tambor e as balas caem. Então passava horas admirando a bala, seu desenho, suas cores. Imaginava aquela ponta de metal perfurando a carne e o osso de alguém. Perguntava-se quanto tiros seriam necessários para matar alguém, ou, além do coração, para qual outro órgão deveria apontar o seu revólver. Colocava a arma descarregada na cabeça e apertava o gatilho. Quando não, na altura do queixo ou na boca — simulando felação. Só para passar o tempo. E, como um rato, também fazia buracos na parede.

Houve uma noite em que alguém tentou forçar sua porta.

Seu filho estava dormindo e seu esposo não estava em casa. Naqueles dias, conversando com ratos, escutando gemidos, com uma arma na boca, ela só conseguia dormir quando ele chegava, tarde da noite.

Com as mãos trêmulas, destravou o tambor. Tentava colocar as balas do revólver, que caiam no chão. Ao mesmo tempo em que a porta era forçada. Mais e mais. Ela não tinha tempo para se abaixar e procurar as balas que rolaram pra debaixo da cama. Havia duas ou três no tambor. Se a sequência de tiros fosse deflagrada rapidamente, suas chances amentariam, já que em seu revólver cabiam seis munições.

Pode entrar, seu filho da puta, disse de si para si, quando saiu do seu quarto, postando-se de frente a porta. Até que a chave do lado de fora girou e abriu de repente.

Amor?

Era seu esposo. Ela não viu o rosto — ambos estavam na penumbra. Usava máscara. Reconhecendo-lhe a voz, retornou ao quarto.

À parede.

Aos chiados.

***

Havia acordado com boa disposição. Há dias que as costas não lhe doíam, nem escarrava sangue. A febre não a visitara mais nos fins de tarde. Adquirira peso, achava. Não conseguia contar as costelas com facilidade. Seu esposo, precisava dividir aquilo com ele, pensou. Afinal, foi devido aos seus esforços que ela estava agora ali, viva. De repente, seu pensamento foi cortado pela agitação da parede. As pessoas estavam efusivas. Não sabia definir aquilo, mas era uma mistura de saudações, preces e choros. De gritos e pulos. Riu e pensou que talvez sua alegria tivesse passado para a parede. Pensou que talvez a parede quisesse também celebrar, da sua forma, a sua saúde. Então escutou o grito de pessoas nas ruas, fogos, buzinas. Não só parede, mas o mundo agora parecia se contagiar em saber que ela havia melhorado.

Com o ânimo renovado, juntou força e abriu a porta do quarto. Seu filho, que assistia televisão, saltou em sua direção.

Mamãe, mamãe, encontraram a cura! Encontraram a cura!, disse.

Ela, a primeira vez em muito tempo sem o uso de uma máscara, abraçou-lhe e chorou. Sentiu a pele macia de seu rosto e o beijo úmido. Foram até a janela. Assim como eles, as pessoas se abraçavam. Conhecidos ou não. Tiravam suas máscaras, jogavam no chão. Queimavam-nas.

A fechadura dava voltas nervosamente. Era seu esposo. Que ao abrir a porta, jogou a máscara a um canto. Os dois correram para os braços um do outro. Os lábios se colaram. Não disseram nada. Ela apenas o abraçou apertadamente. Com a cabeça em seu peito, passou a mão em sua face. Sentiu uma cicatriz.

* Publicado inicialmente em nosso site anterior, chamado Literatura & Outros Blues, no dia 29/08/2021.

Sobre o autor:

William EloiWilliam Eloi nasceu no litoral paulista (Guarujá) em 1978, sob o signo de aquário. Radicado em Natal desde 1984. Ex-membro da banda de rock Electrilove (1998 -2002) com quem gravou o Ep “Strange thing Called Electrilove” (100 discos do rock potiguar). Participou da extinta HQ Hollos, como desenhista e argumentista. Vencedor do concurso de poesias “Um raio de poesia”, em 2008, com o poema “15 minutos”, promovido pela Faculdade de Excelência Educacional do Rio Grande do Norte. Cronista dos Sites Carta Potiguar, Substantivo Plural, Mundo de Livros, Tamarina literária e JOL. Em 2018 teve uma crônica utilizada como tema da redação de um concurso da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, “Cartas que (ainda) te quero cartas”. Ainda em 2018, participou da antologia de contos 2084: Mundos Cyberpunk, editora Lendari. Em 2019 lançou o livro de contos “A Vertigem seguida da Náusea”, pela Sol Negro edições. Participou da coletânea de contos “O Duplo” este ano. Tem como principias influências Henry Miller, Jean Genet e o grupo Calçada Quatro.

Um comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *