ALIEDSON LIMA: Podemos começar pela provocação presente já no título de seu mais recente trabalho: As putas escrevem (Editora Urutau, 2024). Afinal, o que é uma puta?
MARCELA FASSY: Uma puta é, basicamente, qualquer mulher (cis, trans, pessoa não binárie) que age de forma a desagradar alguém, ou que age de forma diferente do que seria esperado dela. Isso não necessariamente precisa ter alguma relação com a sexualidade, com um comportamento supostamente “promíscuo” etc – embora, numa sociedade sabidamente patriarcal, machista, misógina, moralista, estas coisas estejam frequentemente associadas, pois há uma tentativa muito grande de controle dos corpos, da sexualidade e do desejo feminino. A princípio, puta é uma palavra usada quando se quer atingir uma categoria específica de pessoas: pessoas fêmeas – como escrevi no conto “O Muro”, que abre o livro. Agora, homens eventualmente também podem ser “putas”: homens que desviam, que não se submetem ao padrão de masculinidade que lhes é imposto. Enfim, se fizer direitinho, todo mundo pode ser puta (risos).
A. L.: “Numa sociedade sabidamente patriarcal, machista, misógina, moralista”, as putas realmente escrevem?
M. F.: A noção de “escrita”, presente no título do livro, está associada, claro, ao ato de escrever, de forma literal, mas também simbolizando o ato discursivo de uma forma mais ampla: escrever, dizer, enunciar, produzir sentido, nomear o real ao mesmo tempo em que o real é produzido, transformado, enquanto é nomeado e pelo fato de poder ser nomeado. Nesse sentido, escrever é um gesto de apropriação e reapropriação do vivido, é uma forma de ressignificar e elaborar aquilo que a gente vive. É um gesto de poder: é uma forma de dizer “eu existo”, “eu estou aqui”. Então, nesse sentido, as putas realmente escrevem, ou seja: as mulheres (mas também homens, ou qualquer pessoa que ouse dizer e agir sobre a realidade e nomeá-la à sua maneira) exercem esse poder. No livro, a questão da escrita associada ao desejo e ao poder do sujeito de dizer quem ele é e ao que veio, é muito explorada através da palavra escrita, grafada. Num dos contos a palavra “puta” está escrita num muro, em outro num e-mail. Num outro, ainda, a palavra surge inscrita na capa de um livro, num contexto em que a personagem subverte o uso do termo “puta” como ofensa, se apropria dele e o devolve ao mundo transformado: as putas escrevem.
A. L.: Você terminou o conto “A primeira vítima” com a sentença “Uma mulher pode muito pouco contra o seu corpo”. Fiquei com a sensação que gostaria de falar mais sobre isso. Sua oportunidade.
M. F.: Obrigada pela oportunidade! (risos) Essa frase é uma espécie de brincadeira, de inversão dos papéis tradicionais de gênero. A gente cresceu ouvindo que um homem age de determinada forma, que os homens têm condutas machistas, reprováveis, etc, porque, afinal, “é um homem”, porque “homens são assim”, homens fazem isso, é da sua natureza. Uma naturalização ou biologização de comportamentos que, na verdade, são socialmente construídos, o que serve para corroborar e reproduzir o machismo e a misoginia. Então eu quis fazer essa inversão, brincar com essa ideia numa narrativa em que a personagem comete um ato de violência (uma violência, que, no caso, é uma reposta à violência inicial da qual ela foi vítima) se “justificando”, como os homens geralmente fazem no contexto de uma cultura patriarcal, através do argumento de que ela agiu assim porque é da sua natureza, porque ela não tinha controle sobre seu corpo, sobre seus atos, apenas seguiu seus instintos.

A. L.: A narrativa “Nada aconteceu a meu avô” nos faz refletir sobre o poder que a literatura tem quando se trata de registrar, evidenciar e até mesmo denunciar. Você acredita que se o índice de leitores desse país continental fosse consideravelmente maior teríamos surfado nessa onda de autoritarismo que assola nosso tempo, tal como se sucedeu? Falando nisso, já foi ver o Ainda Estou Aqui?
M. F.: Olha, eu sou bem cautelosa quando se trata de associar a leitura aos níveis de “esclarecimento” ou da existência de uma cultura política democrática em uma sociedade. Não acho que seja uma relação automática, acredito que existam muitos fatores, bastante complexos, nessa equação. Por exemplo, para além da leitura, tem a questão da interpretação, da apropriação daquilo que é lido pelo sujeito, da capacidade ou incapacidade desse sujeito de estabelecer relações entre aquilo que é lido e o que é vivido e observado ao seu redor. Agora, eu acredito sim na potencialidade que a leitura e a literatura, assim como a arte em geral, têm de estimular a alteridade, a empatia, as sensibilidades, a visão crítica sobre o mundo. Se essa potencialidade será ou poderá ser plenamente alcançada, aí é uma outra questão. No conto “Nada aconteceu a Vovô” a leitura e o conhecimento adquirido através dos livros (mais especificamente, o contato que a personagem tem com a história do Brasil durante a ditadura militar, com a história de seu avô e com a sua própria) são trabalhados a partir do prisma da memória, do dever de memória, da disputa pela memória, da noção de que a memória não se refere somente ao passado mas também interfere no presente e no futuro. Que a memória do avô e da violência sofrida por ele durante a ditadura militar seja afirmada, difundida, é fundamental para aquela personagem individualmente mas também do ponto de vista coletivo, social. Nesse sentido eu acredito, sim, na importância da literatura e da arte como registro e denúncia do fascismo, da brutalidade, da barbárie, da ignorância. O filme Ainda Estou Aqui – que, infelizmente, ainda não tive tempo de ver, mas pretendo assistir urgentemente – é um ótimo exemplo.
A. L.: Pensando na atual conjuntura da cena literária, levando em conta o mercado editorial, o público leitor e tudo o mais, você acredita que estamos caminhando em direção a um país mais igualitário em termos de espaço entre os gêneros?
M. F.: Não (risos). De fato, hoje em dia as mulheres alcançaram um protagonismo na cena literária que nunca existiu antes. Hoje temos incentivo à produção literária feminina, prêmios voltados para autoras mulheres (cis e trans), campanhas para que mais mulheres sejam lidas, as temáticas relacionadas ao gênero são valorizadas nas obras literárias. E isso também acontece em decorrência de uma sociedade na qual, em que pesem todas as injustiças e disparidades entre os gêneros, ainda gritantes, houve um avanço significativo: mulheres alcançaram espaços que antes eram restritos ou quase exclusivos para os homens, e alguns destes espaços estão diretamente ligados à produção literária, como as universidades e o mercado editorial. Ainda temos um longo caminho a ser percorrido rumo a um país mais igualitário em termos de gênero, mas avanços importantes foram feitos. Agora, quando a gente fala no mercado editorial, não podemos esquecer que este mercado está inserido num contexto capitalista e neo-liberal. Dentro desse cenário, é impossível falar em uma cena literária igualitária, e isso transcende a questão de gênero. O mercado editorial condena autoras e autores independentes ao ostracismo, à invisibilidade. Furar a bolha, fazer com que seu livro circule, seja lido, alcance um público leitor expressivo, etc, nesse contexto, é algo extremamente difícil e massacrante. Um peso que recai de forma particularmente perversa sobre as autoras independentes que são mulheres, e que geralmente acumulam mais funções e estão mais sobrecarregadas, dividindo seu tempo e energia entre os papéis de escritora, divulgadora da sua obra literária, profissionais do mercado formal de trabalho de onde geralmente extraem seu sustento, mães, esposas, filhas, donas de casa etc.
A. L.: Ao menos aqui, vamos nessa direção: sei que não dá pra indicar todo mundo, mas gostaria que indicasse um time de mulheres navalhistas para ficarmos de olho no que elas vêm produzindo.
M. F.: Nossa, com certeza vou deixar muita gente de fora e cometer injustiças, mas pensando rápido e usando o critério de autoras brasileiras contemporâneas que acompanho e que influenciam na minha escrita, tanto na prosa como na poesia, cito aqui Natália Zuccala, Andrea del Fuego, Marina Monteiro, Euler Lopes, Mariana Salomão Carrara, Carol Bensimon, Julia Baranski, Mariana Basílio, Mirian Freitas, Ana Elisa Ribeiro, Flávia Péret… mas com certeza vai faltar muita gente, estas listas são cruéis (risos).
A. L.: No começo de várias narrativas a narradora toma por interlocutora uma outra mulher, passando a ideia de que há em As putas escrevem uma teia de empatia e afeto. Ainda pensando na atual conjuntura de nossa produção literária, Marcela Fassy acredita que há mais dessa teia entre as navalhistas ou condicionamento à competição é maior?
M. F.: Eu acredito que a nossa sociedade tem, felizmente, caminhado no sentido da produção de um discurso que promove as relações de empatia e afeto entre as mulheres, a construção de redes de apoio e solidariedade, escuta, acolhimento. O discurso de que mulheres são essencialmente rivais está, felizmente, saindo de moda (ao menos dentro de uma determinada bolha). Ouso dizer que esse discurso de solidariedade entre as mulheres já vem conquistando alguma hegemonia dentro da indústria cultural, das mídias, etc, e vejo isso como algo muito positivo e necessário. E, como eu disse lá em cima, discursos produzem efeito sobre o real. Isso perpassa o meio literário e as demais instâncias da experiência coletiva. Então eu acredito, quero acreditar, que essa teia de afeto e empatia é mais consistente do que o condicionamento à competição que marcou a forma como minha geração, por exemplo, foi socializada. Não é somente algo em que eu acredito, mas algo que eu sinto e vivencio nas minhas relações com as mulheres ao meu redor. Recebi e recebo muito apoio e incentivo de mulheres escritoras e leitoras, isso foi e continua sendo fundamental para a minha caminhada enquanto autora. O principal esteio que eu tive dentro da cena literária veio, principalmente, das mulheres. Agora, quando falamos em seres humanos se relacionando, qualquer que seja o gênero, estamos falando de subjetividades extremamente complexas, em conflitos, disputas, emoções e sentimentos que, necessariamente, não serão sempre positivos, amorosos, harmoniosos. As relações entre mulheres passam e passarão, sempre, pela complexidade e pela ambiguidade, simplesmente pelo fato de que somos humanos.
A. L.: Alguma coisa sobre o seu livro que gostaria de falar e não tocamos no assunto ainda? Pode descer a navalha.
M. F.: Gostaria, principalmente, de agradecer O Navalhista por este espaço tão rico, tão fecundo para a divulgação e para a produção de pensamento sobre a literatura nacional contemporânea, pela acolhida, pela oportunidade de falar do meu trabalho de uma forma mais aprofundada, mais refletida. Isso é especialmente precioso em tempos de comunicação instantânea nas redes sociais, em que se produz palavras num ritmo incessante mas que se tem pouco tempo e disponibilidade para uma leitura e uma reflexão mais detida, menos apressada. Obrigada!!!
Sobre a entrevistada:

Marcela Fassy nasceu em Belo Horizonte, em 1984. É historiadora, arte-educadora, especialista em Artes Visuais e Mestre em Ciências Humanas. É autora dos livros de contos Animais Cinzentos (Viseu, 2021), Oniros (Urutau, 2022), e As Putas Escrevem (Urutau, 2024, menção honrosa no Concurso Nacional da UBE-PB). Recebeu o Prêmio Caio Fernando Abreu 2024 por seu romance inédito Abafada (no prelo, Editora Reformatório).