Na praça onde a roda de samba começava a ganhar corpo e o cheiro de churrasquinho misturado com cerveja invadia o paladar e os corações, a multidão se apertava em volta dos músicos para cantar e dançar. Era sábado, mais ou menos meio-dia, e os sons do pandeiro e do surdo marcavam o compasso e ecoavam pelo bairro do Alto do Cristo. A alegria estava completa para quase todos nós, menos para o meu amigo Théo. Ele se sentia incompleto pois precisava conversar urgentemente com Patrick assim que este chegasse.
Théo era gay. Amava samba e futebol, e pra ele, o esporte nada tinha a ver com a sua sexualidade. No início ele sofreu certo preconceito, porém resistiu até ganhar o seu espaço entre os colegas, e isso o deixava feliz, mas como eu disse, ele se sentia incompleto. Ele gostava de acreditar que era um homem simples, desses que se satisfaz com seu emprego, sua rotina, com a sua mesa de amigos e com os fins de semana jogando futebol no campinho ou na quadra da praça da juventude, famosa em nosso bairro por ser uma das maiores da cidade a organizar alguns dos torneios mais disputados. Só que havia um detalhe que estava há dias o perturbando: Théo e Patrick nunca tinham conversado sobre o que sentiam, e na cabeça de Théo, pertencia somente a ele esse sentimento de amor.
No entanto, como o apaixonado, na maioria dos casos perde a nitidez do que está a sua frente, Théo não percebia os olhares de Patrick. Olhares de um jeito que só quem estava ao redor conseguia compreender. Patrick era o cara que fazia golaços e sabia dançar muito bem quando tocavam a cuíca. Quando Théo o via aos sábados ou nos jogos de futebol, ele acreditava que Patrick existia para unir duas de suas paixões: Futebol e samba.
Nesse dia, enquanto o Théo dançava, Patrick finalmente apareceu do outro lado da rua, trazia um violão pendurado nas costas e ainda vestia a camisa suada do Flamengo. O cabelo em cachos grudando na testa, e os olhos claros acastanhados carregavam aquele brilho de artilheiro. Théo, no primeiro momento, desviou o olhar e disfarçou, fingindo que não estava vendo Patrick chegar. Théo então virou um copo cheio de cerveja, buscando uma espécie de coragem que só os bêbados dizem ter. Eu, que estava ao seu lado, brinquei “O seu nervosismo está denunciando o seu descompasso”, ele riu. Não era só o agogô, e atabaque e o tamborim que estava naquelas batidas rápidas, agitadas e loucas – era também o coração de Théo e ele sabia disso há muito tempo.
Patrick chegou perto de nós dois, cumprimentando o Théo com um abraço que durou meio segundo a mais do que deveria e a mim, com um aperto de mão. Durante o abraço, Théo revirou os olhos e sorriu pra mim, felicíssimo com o toque. Aquela proximidade casual era o suficiente para abalar e desmoronar suas emoções.
Achei que não vinha – Disse meu amigo Théo, tentando parecer indiferente.
Patrick sorriu, tirando o violão das costas – Você sabe que o nosso, quer dizer, o sábado da galera é sagrado. Pelada de manhã e ao meio-dia, almoço, cervejinha gelada e samba. A gente começa o dia do jeito certo.
Théo riu, mas por dentro fervia de desejo e paixão. Fazia tempo que se aconselhava comigo e confessava essa mistura de desejo e medo em seu coração, em saber como transformar aquela amizade, aqueles olhares ambíguos em algo mais. O receio de perder Patrick, caso falasse demais, era maior que sua coragem.
A roda de samba virava pagode e do pagode retornava ao samba. Estava pegando fogo quando Patrick se juntou sem cerimônia. A batida do tam-tam encontrou a cadência do violão, e a voz dele soava como um convite irresistível. Theo, como de costume, ficou de canto, observando. Eu o encarava e dizia sugestivamente “Vai falar com o Patrick” e ele, ainda com receio, negava com a cabeça. Patrick, naquela mistura de batuque e melodia, representava tudo para o Theo, representava liberdade. E o Theo nunca soube lidar muito bem com isso.
Então, na telinha da TV veio o inesperado gol. Patrick, entre uma canção e outra, continuava a trocar olhares rápidos com Théo até que finalmente ele soltou uma provocação que, de tão casual, parecia ensaiada: – Aposto que você não dança. Théo que sempre achou os pés pesados demais para sambar, tentou se esquivar. – Não é pra mim, não. Só sei marcar e fazer gol. Mas Patrick não deixou barato. Levantou-se, ainda segurando o violão, e atravessou a roda até o Theo. – Você sabe, só tem muito medo.
O sorriso de Patrick desarmou Theo. Sem pensar muito, Theo se deixou puxar para o meio da roda. Os amigos em volta aplaudiram, acho até que muitos outros já sabiam desses sentimentos latentes. A galera riu da cena improvável: Patrick ensinando o Theo todo desajeitado a samba, e nesse momento, os dois se pegaram rindo também da situação.
Entre risadas e passos tortos, Theo finalmente entendeu o que tanto admirava em Patrick. Não era apenas suas qualidades físicas ou o seu jeito simpático – era o jeito que ele fazia tudo parecer possível. E assim, nesse momento, Theo percebeu que o medo do erro e da confissão, era menor que a vontade de estar perto do Patrick. Sem aviso, Patrick parou de dançar e, ainda sorrindo, murmurou baixinho, só para o Théo: – Viu? Não foi tão difícil. E antes que o Patrick dissesse mais alguma coisa, Theo fez o tão esperado movimento do amor: o beijo. Ele encostou os lábios nos de Patrick, como se fosse apenas mais um passe no meio da partida. O barulho da roda de samba continuava como se nada tivesse acontecido, mas para os dois, eu sei, eu sinto, o mundo parou.

Ítalo Rafael Lima Dourado. Oriundo da cidade de Sobral no estado do Ceará é um autor que se destaca no campo da poesia. Suas obras incluem “Úmido ou Episódios Dramáticos de Utilidade “, publicado pela Editora MWG em 2020 e “Outras Horas Úmidas “, lançado pela Editora Tomaaíumpoema em 2022.