Leonardo Castelo Branco nasceu em São Paulo, em 1986. Atua como escritor, roteirista e redator publicitário desde 2005. É autor da biografia de Oscar Maroni (2017) e de diversas obras como ghostwriter. Seus textos literários, alguns premiados nacional e internacionalmente, foram publicados em revistas como Subtextos, Sucuru, Navalhista, Mirada Janela, Brasilis e Ruído Manifesto. Em 2025, publicou O Rascunho da Vértebra, pela editora Comala, com prefácio de Xico Sá e quarta capa assinada por Renan Sukevicius. A obra foi viabilizada via crowdfunding e atingiu a meta em apenas seis dias de campanha.
E é com ele que batemos um para agora:
Revista Navalhista – A Editora Comala publicará em breve sua estreia na ficção, O Rascunho da Vértebra. Antes dele, Leonardo Castelo Branco assinou a biografia de Oscar Maroni. Com o que é mais difícil de lidar: com a responsabilidade de elencar fatos, acontecimentos, respeitando a história e legado de figuras que de fato existiram, ou lidar com a ficcionalização de suas próprias vértebras, como nos parece o novo livro?
Leonardo Castelo Branco – Ótima pergunta. Especialmente porque meu trabalho transita justamente entre esses dois territórios: o real e o ficcional.
Escrever a biografia de uma figura pública como o Maroni abriu as portas para uma carreira como ghostwriter. Não foi algo planejado, mas que acabou acontecendo. Aprendi a gostar desse ofício porque, quando construído em parceria com o retratado, o texto biográfico deixa de ser apenas um relato e se torna uma narrativa viva, única, íntima.
Biografar alguém é um exercício de escuta, confronto, checagem, contenção — e, não raro, de suspensão do juízo. A responsabilidade é externa: com os fatos, os nomes, os registros, o legado.
Já O Rascunho da Vértebra exigiu outro tipo de mergulho. Escrever a ficção a que me propus foi também um exercício de escuta, mas voltada pra dentro. E, nesse sentido, talvez mais arriscado. A matéria é instável, a fronteira entre o vivido e o inventado é difusa, quase sempre borrada. Aqui, a responsabilidade não é mais com a exatidão dos fatos, mas com a verdade emocional da experiência: aquilo que permanece mesmo depois que a memória falha.
Biografar o outro exigiu técnica. Ficcionalizar a mim mesmo exigiu coragem. Gosto dos dois desafios.
R. N. – Seu livro parece habitar as margens: entre o vivido e o inventado, entre a crônica e o diário, entre a melancolia urbana e o afeto cotidiano. A estrutura fragmentária não apenas reflete o ritmo do pensamento, mas também parece construir uma cidade emocional. Até que ponto essa forma é consequência do conteúdo — e até que ponto é um gesto político, uma escolha estética para dizer que a vida não se organiza em capítulos, mas em restos e ruídos?
L. C. B. – A pergunta toca num ponto essencial: O Rascunho da Vértebra não tem estrutura tradicional porque nem o tempo, nem a memória, nem a experiência urbana funcionam de forma linear. A fragmentação não é só forma, é consequência do olhar.
Essa desorganização do mundo, que às vezes parece ruído, é também ritmo. E eu queria que o livro tivesse esse ritmo — não o da narrativa bem amarrada, mas o da vida pensada entre pausas.
Ao optar por uma forma fragmentária, também quis dizer: a gente não precisa fingir coesão o tempo todo. Não precisa forçar sentido. A vida não é feita de capítulos bem fechados, é feita de resquícios, vírgulas mal colocadas, lembranças que surgem do nada e vão embora sem explicação. Existe, sim, uma escolha estética aí, mas antes dela, existe uma escuta. A cidade fala assim. A memória fala assim. E eu só tentei escrever do mesmo jeito.
R. N. – No prefácio, Xico Sá destaca que “a escrita de Leonardo Castelo Branco alterna epifanias existenciais e a crônica de um flâneur, um observador que vaga e divaga pela cidade.” De onde vem esse olhar, Castelo Branco?
L. C. B. – Esse olhar vem de uma mistura de coisa vivida e coisa lida. Mas, antes de tudo, vem da cidade. Sou paulistano da gema, e viver no centro da maior metrópole da América Latina molda a forma como vejo — e escrevo — o mundo.
Gosto de andar sem rumo, atravessar a Boca do Lixo, observar a pressa alheia, contemplar o outro. Há algo profundamente estranho — e ao mesmo tempo enriquecedor — em prestar atenção aos detalhes numa cidade que nunca para. Estar nas ruas me ancora, me obriga a estar presente, a lidar com o agora sem filtro nem fantasia.
Me reconheço como um homem urbano, no sentido mais cru e sensível da expressão. Alguém atravessado por concreto, ruído, fluxo e restos.
Esse olhar também é alimentado por tudo que li no processo do livro: o flâneur de Baudelaire, o lirismo sujo e sagaz de Reinaldo Moraes, o olhar íntimo dos textos autoficcionais de Paul Auster, os diários labirínticos de Ricardo Piglia, a obsessão por memória de Knausgård, o olhar torto e fragmentado de Vila-Matas.
Gosto da literatura que nasce do intervalo, do gesto distraído, da esquina.
R. N. – Você também é roteirista, tendo em sua trajetória curtas-metragens premiados. Em seu novo livro, podemos notar uma escrita bastante cinematográfica. Gostaria que falasse sobre essa relação simbiótica entre o que você produz para as telas e o que produz para as folhas.
L. C. B. – A escrita cinematográfica me ensinou, antes de tudo, a olhar com calma. O roteiro exige precisão no gesto, no ritmo, no corte. Você aprende que o que não se mostra também comunica e que o silêncio pode dizer mais do que a fala. Acho que esse aprendizado, com o tempo, contaminou minha escrita literária no melhor sentido: me fez confiar mais na sugestão do que na explicação.
Em O Rascunho da Vértebra, isso aparece tanto na forma como as cenas são construídas — muito visuais, muitas vezes quase como planos curtos que se sobrepõem — quanto no uso das elipses, dos vazios entre uma lembrança e outra. Há uma montagem ali. Uma tentativa de escrever como quem edita imagens: cortando, colando, deixando espaço pro leitor respirar.
Já a literatura me permite algo que o roteiro quase nunca dá: a deriva. No roteiro, tudo precisa servir à ação, ao próximo corte, ao objetivo claro. No livro, a pausa também conta uma história. Posso escrever uma página inteira sobre o cheiro do pão queimando na cozinha da infância — e saber que, mesmo sem levar a lugar nenhum, aquilo constrói atmosfera, memória, afeto, um universo inteiro em torno de um detalhe.
No fundo, o que escrevo para a tela e para a folha nasce do mesmo lugar: um desejo de observar o que está por trás daquilo que passa rápido demais. Só muda o estilo, o gesto é o mesmo.
R. N. – Um fragmento do livro: “Vencer a inércia, sentar à máquina e fazer a língua portuguesa dançar”. Como vence a inércia? Quais os rituais que ajudam a “fazer a língua portuguesa dançar”? O que poucos fazem e funciona pra você? O que muitos fazem e não funciona pra você?
L. C. B. – Varia. Tem dias em que o texto já nasce quase pronto, parece que só cabe a mim organizar o que chegou inteiro, como se viesse de um lugar anterior ao pensamento. Outras vezes, tudo começa com uma frase solta, uma ideia anotada, um incômodo qualquer. Algum ponto de partida que pede para ser explorado.
Nunca fui de planejar demais, mas preciso desse ponto de partida. Gosto do improviso — e, às vezes, sinto que a mente já sabe, desde o início, onde quer chegar. Escrever, pra mim, não é seguir um mapa, é andar com a sensação de que algo pode aparecer na próxima esquina. Acredito que todo trabalho criativo carrega essa coisa intuitiva. É isso que torna um texto único, original.
Funciono melhor cedo, com a cabeça limpa. Quando posso, gosto de acordar antes do dia nascer. Esse momento entre o breu e a luz — quando o mundo ainda tá meio desligado — me inspira pra cacete. Mas o tempo escrevendo textos publicitários também me ensinou a ser ágil, a não depender da inspiração. Sei escrever com barulho, prazo curto e cansaço. Às vezes, é só assim mesmo.
O que vejo por aí — e é um eterno clichê — são escritores esperando aquele momento ideal de iluminação, em que vão escrever vinte páginas de uma vez. Pode até acontecer, um dia ou outro, mas é raro. Comigo, nunca aconteceu. Escrever, na real, é criar espaço mesmo quando o tempo (ou a cabeça) não ajuda.
E o que poucos fazem e funciona muito pra mim? Mapas mentais. Gosto de espalhar ideias no papel, sem ordem, e ir conectando os pontos como quem monta um quebra-cabeça ao contrário — aquele em que as peças aparecem antes da imagem. Visualizar o pensamento me ajuda a entender onde começar, o que aprofundar e o que pode ser deixado de lado.
E claro, tem a paixão. Não existe progresso criativo sem um pouco de obsessão, sem aquele desejo de ver a coisa existir. É isso que me faz continuar, mesmo quando tudo parece desandar: o impulso de transformar o caos em linguagem.

R. N. – “Por que escrevo esse diário? Para encontrar. O quê, exatamente, ainda não sei. Mas a essência é essa: busca.” Hoje, com o livro prestes a ganhar o mundo, gostaria de saber se seu personagem, ou quem sabe o próprio Leonardo, encontrou. Se foi o caso, o que encontrou? Ou tudo ainda se resume em busca?
L. C. B. – Um dos desafios do livro foi justamente diferenciar narrador de autor — não porque sejam opostos, mas porque se atravessam. O narrador de O Rascunho da Vértebra é feito de matéria minha, mas não sou eu. Ele pensa mais alto, é mais melancólico, mais nostálgico. Ele escreve para encontrar — e, no fim, encontra o gesto de continuar escrevendo.
Quanto a mim, escrever esse livro foi também um livramento. Ensaiei muitos livros de ficção nos últimos anos, mas todos empacaram em algum ponto. Esse foi pra frente justamente por causa da escuta — uma escuta interna, do cotidiano, do silêncio, do que está ao redor.
Desde que terminei, outros dois projetos começaram a andar com uma fluidez inédita.
Escrever ficou mais natural. Parece que, ao colocar esse primeiro no mundo, algo se destravou — como se a escrita, agora, reconhecesse em mim um espaço possível, legítimo, confiável. Talvez O Rascunho da Vértebra tenha sido isso: não um ponto de chegada, mas uma espécie de porta aberta. Pra linguagem, pra escuta, pra mim mesmo.
R. N. – Pode nos adiantar algo sobre os novos projetos? Ou tem receio de não vingarem?
L. C. B – Atualmente estou trabalhando em dois livros ao mesmo tempo. Dá mais trabalho, mas pelo menos evita o tédio. Um deles é um livro de contos que parte da ideia de que todo mundo tem uma história — mas nem todo mundo tem voz. O outro, confesso, ainda estou descobrindo o que é: uma mistura de ensaio, memória e crônica íntima, talvez? Textos que começam num lugar universal e, sem aviso, desembocam no pessoal. Estou me divertindo nesse processo de não saber exatamente o que vem a seguir.
Outro projeto em que estou engajado é uma consultoria de marketing estratégico para autores, com foco especial na fase de pré-venda — muitas vezes ignorada, mas crucial para o sucesso de um livro. A proposta é ajudar o autor a pensar sua obra também como campanha, desenvolvendo planos de ação personalizados, especialmente para plataformas como a Benfeitoria e Catarse. Além disso, quero promover encontros de networking literário — espaços informais para troca entre escritores, editores e leitores. É uma forma de unir o que mais gosto: escrita, escuta e estratégia. De fazer o que amo, enquanto ajudo outras pessoas a colocarem suas histórias no mundo com mais alcance e clareza.
R. N. – Caindo no modismo das redes sociais: se você gostou de… vai gostar de O Rascunho da Vértebra. Quero que nos indique 3 obras que se aproximam da sua, demonstrando as proximidades.
L. C. B. – O Romance Luminoso do Mario Levrero, que li por indicação do meu editor na Comala, Guilherme Eisfeld, e me surpreendi ao encontrar ecos do que eu mesmo já tinha escrito. Encontrei ali uma sintonia com o meu livro no modo como o cotidiano se fragmenta e, ao mesmo tempo, se costura pela linguagem, sem a obrigação de uma grande trama, mas com a força das pequenas revelações.
Também cito Walden – ou a vida nos bosques, do Henry David Thoreau. Apesar de contextos tão distintos, o que me aproxima dessa obra é a ideia de escuta e de presença. A escrita como uma forma de estar no mundo com atenção radical — e de encontrar sentido na observação mais simples.
Por fim, A Invenção dos Subúrbios, do Daniel Francoy, publicado pela Edições Jabuticaba, que é uma espécie de diário poético da experiência urbana. O livro mistura diário, crônica e prosa poética, sempre oscilando entre o distanciamento irônico e uma identificação lírica profunda com o que é visto — ou pressentido — nas ruas.
R. N. – O Rascunho da Vértebra só precisou de seis dias para bater sua meta na pré-venda. Enquanto redigimos essas perguntas, chega a informação que passamos dos 120 livros vendidos, tendo uma semana inteira para acabar a pré-venda. Qualquer pessoa do ramo sabe que é um sucesso, principalmente se levarmos em conta que se trata de uma estreia na literatura. A que você atribui esse sucesso, quando pensamos em 120 pessoas apostando num livro que ainda não existe fisicamente? Aproveita e deixa um recadinho para esse povo.
L. C. B. – Quando vi a meta pela primeira vez, pensei: não vou conseguir bater isso. Sério. Era um valor que me parecia distante, principalmente sendo uma estreia na ficção. Mas como eu ainda tinha um tempo até o início da pré-venda, resolvi usar esse intervalo pra pensar num plano de ação.
Acho que o sucesso da campanha se deve a três coisas. Primeiro, planejamento. Eu tratei o lançamento com a mesma seriedade de quem prepara um livro já com editora, investindo tempo, estratégia e escuta. Segundo, as pessoas que me acompanham há tempos, que leem o que escrevo, torcem por mim, compartilham. Isso fez muita diferença.
E, por fim, os amigos e parentes (o que seria de nós sem eles?) que ajudaram ativamente na campanha — seja divulgando, apoiando, enviando mensagens ou me lembrando, nos dias mais incertos, do valor do que eu tava colocando no mundo.
Bater a meta em seis dias e já ultrapassar os 120 exemplares vendidos foi emocionante. Me mostrou que não estou sozinho nessa caminhada.
E a quem apoiou, meu agradecimento mais sincero: vocês não só apostaram no livro, vocês foram parte do nascimento dele. Esse projeto é de vocês também. Muito, muito obrigado.
R. N. – Não encerraremos com uma pergunta. Use esse espaço para falar algo que desejar. Liberdade total. Antes, saiba que nos sentimos gratos por somar ao nosso projeto mais uma vez. Dizer que desejamos mais e mais sucesso para seu livro e sua carreira. Dizer que o espaço permanecerá sempre aberto. Até a próxima, Leonardo.
L. C. B – Só posso agradecer pelo espaço e pela generosidade. É uma alegria fazer parte dessa história e ver os Navalhistas seguirem firmes, afiando ideias e abrindo caminhos. Vida longa ao projeto. E até a próxima!

Leonardo Castelo Branco
Que baita entrevista. Gosto muito quando o autor reflete-se na sua obra de forma tão genuína. Chega a arrepiar.
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