NAVALHAR É PRECISO – GIOVANI MIGUEZ [entrevista]
NAVALHAR É PRECISO – GIOVANI MIGUEZ [entrevista]

NAVALHAR É PRECISO – GIOVANI MIGUEZ [entrevista]

REVISTA NAVALHISTA – Giovani Miguez é Doutor e mestre em Ciência da Informação e autor de 15 livros. Como alguém que me parece abraçar a filosofia nietzschiana, o que te faz amar mais o seu destino: ouvir alguém te chamar de poeta ou de doutor?

Giovani Miguez – Poeta, não tenho a menor dúvida. A vida acadêmica foi, eu diria, contingencial. A vida poética, uma imposição existencial, algo que neguei por muito tempo, que enterrei sob o pretexto de que a poesia não me levaria a lugar algum. Um dia, quando a poesia não pode mais ser contida, ela transbordou e eu sangrei.  Eu acabara de atravessar um período de muita turbulência moral e emocional.  De certa forma, meu mestrado e meu objeto de investigação, o homem como animal simbólico e sua relação com a informação, acabaram impactando nesse reencontro com a poesia. Desde então, a contingência de uma busca intelectual e a imposição de uma existência estética caminharam pari passu. Minha tese de doutorado, aliás, levou sete anos para ser concluída, pois ela refletiu esse momento de grande abundância poética que, em certo sentido, retardou a escrita acadêmica. De 2017 a 2024, mais de 50 cadernos e 5000 poemas nasceram em paralelo ao fazer acadêmico. A travessia do doutorado, hoje tenho alguma clareza, me tornou mais poeta que “cientista”. Minha poética, que hoje eu chamaria de documental, confirmou minha tese.

R. N. – Além de Nietzsche, quais outros nomes compõe a seara de referências literárias/filosóficas do poeta?

G. M. Antes de qualquer um, Carl Gustav Jung, pois foi ele, aliás, que me levou até Nietzsche.  Tenho ainda uma dívida muito grande com um filósofo espanhol chamado Xavier Zubiri, a quem devo muito minha formação intelectual. De modo geral sou muito eclético e indisciplinado nas minhas referências. Mas, Nise da Silveira, Cecília Meirelles, Cora Coralina, Wilfred Bion, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Ludwig Wittgenstein, Fernando Pessoa, Manoel de Barros, Mario Quintana, Paulo Freire, Orides Fontela, Jorge Luis Borges, Paulo Leminsk  e Henriqueta Lisboa e os marginais da década de 70, especialmente Ana Cristina Cesar, Cacaso e Torquato foram grandes influências. Atualmente, digo, da pandemia para cá, tenho me ocupado de autores decoloniais e latino americanos, pois entendo que nos brasileiros temos uma dívida muito grande com estas referências.

R. N. – Você descreve a poesia como uma “imposição existencial” que transbordou em um momento de turbulência, marcando um reencontro inevitável. Considerando essa gênese visceral, como essa experiência fundamental moldou sua visão sobre o papel essencial da poesia não apenas em sua vida, mas também como um contraponto no mundo contemporâneo?

G. M. A turbulência moral e emocional que vivi não foi meramente um gatilho, mas sim a comprovação da natureza intrínseca da poesia em minha existência. O transbordamento poético se revelou não como um escape, mas como uma necessidade orgânica, quase um imperativo psico-biológico. Essa experiência primordial forjou minha compreensão da poesia como uma ferramenta de confrontação da realidade, um veículo para articular o indizível e para encontrar um fio de sentido no aparente caos. No contexto do mundo atual, acredito que a poesia assume um papel crucial de resistência à superficialidade e à efemeridade. Ela nos convida a mergulhar nas profundezas da experiência humana, a resgatar a sensibilidade e a fomentar uma conexão mais autêntica com nossa própria essência reflexiva.

R. N. – No texto que abre Amor Fati e outros poemas dionisíacos, você inicia assim: “Em um mundo que se apressa e se desfaz em pixels efêmeros, ousar falar de amor fati, de amar o destino em sua totalidade, soa como um contraponto desafiante à sinfonia frenética do contemporâneo.” No entanto, você ousa. Tem valido a pena?

G. M. Sem a poesia eu teria me afogado em minha profunda agonia. A poesia, eu já escrevi sobre, foi uma eufonia, minha eulalia e, ao mesmo tempo, meu silêncio.  O fazer poético fez de mim alguém, se não melhor, mais resignado com o pior. Se tem valido a pena? Não sei. Mas eu fiz desse desatino chamado poesia um destino, ou ao menos um modo de amá-lo em toda sua dureza. Desde os meus primeiros livros me afirmei como um “animal poético, existencialmente est(ético)” – grafado assim mesmo, pois entendo que não há estética que não possua uma ética nela implícita -, e tenho sido fiel a este propósito que eu tenho chamado de projeto poético.

R. N. – Do Amor Fati, versos do poema Coleções: “eu, não coleciono nada/ além de sonhos, dívidas/ e dúvidas”. Qual seu maior sonho, sua maior dívida (não necessariamente financeira) e sua maior dúvida?

G. M. Creio que meu maior sonho seja poder comprar meu ócio, para poder viver meu hedonismo poético; digo, “para viver não dá, mas de, na e para a poesia”, como me disse certa vez a poeta Thereza Christina Roque da Motta. Eu nem chamaria de sonho; talvez de utopia; temo, entretanto, almejar isto, pois acredito que as utopias, de modo geral, sempre se realizam como distopias. Minha maior dívida, segue sendo em relação à minha vida prática e sua conexão com a realidade, pois talvez eu esteja vivendo aprisionado entre este sonho e minha maior dúvida, ou seja, se sou, de fato, capaz de viver plenamente minha poesia, que outrora me resgatou de um afogamento existencial, sem me perder em um outro mar, um mar de afetos que faz da poesia, outrora uma boia salva vidas, uma âncora de me impede de navegar pelo real. 

R. N. – Em Um elogio à preguiça e outras lavras preguiçosas seus versos cumprem a premissa do título. Trazendo a coisa para nossos dias, neste mundo sempre mais veloz e volátil, por que se torna cada dia mais difícil tecer esse um “elogio à preguiça”? Como deixamos a ociosidade se tornar tamanho luxo? 

G. M.  O produtivismo tornou-se uma praga, uma praga que ensejou outras pragas, ainda mais nocivas como a dos workaholics e os coachs.  Não só o mundo empresarial, mas a ciência e a própria literatura, por exemplo, passaram a servir às métricas mais do que ao que realmente deveria importar: o deleite e o envolvimento. As pessoas contam artigos publicados mais do que a profundidade do que se pensa e investiga. As pessoas contam a quantidade de livros lidos mais do que a profundidade do que se lê e a genuína experiência da leitura. Entregamo-nos a um utilitarismo pernicioso. Passamos a idolatrar o (des)envolvimento nos tornando zumbis. Deleuze, aliás, escreveu que o único mito que verdadeiramente interessa é o mito do zumbi. E, nestes tempos acelerados, estamos sucumbindo ao cansaço e a uma vida paliativa, nos alimentando de cérebros cada vez mais vazios e nos perdendo do homo curare que deveríamos resgatar. O advento das redes sociais e das inteligências artificiais estão nos empurrando ainda mais neste abismo. Não prego que não devemos abraçar a modernidade, mas transformamos a técnica em fim e não em meio. É nesse sentido que digo que precisamos “elogiar a preguiça”, pois é na “boa” preguiça que nos reencontraremos com o ócio criativo e com o humano que submergiu na abismal fenda ontológica que a tecnologia abriu. A saída para este abismo ontológico está no cuidado.  O homem que cuida deve ser a ponte ontológica entre todas as perspectivas antropológicas que estão no entorno deste imenso abismo chamado real.  A sociedade que nos espera no futuro precisa ser a sociedade do cuidado; e a poética, penso, terá papel fundamental nesta sociedade a ser construída.

R. N. – De que maneira a temática do ócio e da preguiça, explorada em Um Elogio à Preguiça, contribui para a construção de uma poética antilírica, e como essa abordagem se diferencia ou se assemelha à reflexão filosófica sobre o destino em Amor Fati?



G. M. Em Um Elogio à Preguiça, a temática do ócio opera como uma crítica ao produtivismo moderno e, por extensão, a uma visão da poesia como “trabalho” árduo e solene. A preguiça é quase um manifesto por uma poesia mais despojada, menos preocupada com a forma tradicional e mais com a expressão autêntica. Essa atitude se alinha ao antilirismo ao rejeitar a idealização do poeta e do ato poético. Em Amor Fati, a reflexão filosófica sobre o destino poderia sugerir um lirismo mais intenso, mas preferi tocar o tema com uma linguagem direta, buscando comunicar ideias complexas de forma clara, o que também se configura como uma forma de antilirismo. Ambos os livros, portanto, utilizam o antilirismo para desconstruir expectativas tradicionais sobre a poesia, seja pela via do humor e da ironia, seja pela via da clareza filosófica. 

R. N. – Em seus versos, você coleciona “sonhos, dívidas e dúvidas”. Diante dessa confissão e considerando sua “utopia” de alcançar um “ócio hedonista poético”, como essa aspiração se relaciona intrinsecamente com as “dívidas” que o prendem à realidade prática e as “dúvidas” existenciais que permeiam sua busca poética? Em outras palavras, de que maneira a tensão entre o ideal poético e as contingências da vida nutre ou obstaculiza sua criação?

G. M.  A “utopia” do ócio hedonista poético representa o anseio profundo por um espaço desimpedido onde a poesia possa florescer sem as amarras das obrigações mundanas. As “dívidas” que menciono simbolizam justamente essa dificuldade de harmonizar o reino da criação com as exigências concretas da existência. Sinto uma constante fricção entre o universo dos afetos e da linguagem poética, onde encontrei um refúgio e uma voz, e a necessidade de navegar pelas águas, por vezes turbulentas, do mundo real. A “dúvida” central reside na possibilidade de viver plenamente essa poesia redentora sem que ela se transforme em um isolamento estéril, uma âncora que me impeça de interagir vitalmente com a complexidade da vida. Essa tensão constante entre o ideal e o real, entre a liberdade da imaginação e as prisões da praticidade, paradoxalmente, nutre minha escrita ao expor as fraturas e as buscas inerentes à condição humana, mas também a obstaculiza ao gerar uma sensação perene de incompletude e de distância entre o desejo e a concretização.

R. N. – Considerando a linguagem coloquial e acessível presente em ambos os livros, como você utiliza essa escolha estilística para aproximar a poesia do leitor contemporâneo e quais os limites dessa aproximação no que tange à expressão das emoções e à profundidade filosófica?

G. M.  A linguagem coloquial é uma ferramenta fundamental para que eu possa me conectar com o leitor, tornando a poesia mais palatável e relevante para o cotidiano. Em Um Elogio à Preguiça, essa linguagem permite uma identificação imediata com as experiências diárias, o que reforça o tom antilírico ao afastar a poesia de um registro mais elevado. Em Amor Fati, a linguagem acessível facilita a compreensão de conceitos filosóficos complexos, aproximando a filosofia da experiência vivida. No entanto, essa escolha pode gerar um debate sobre os limites da expressão emocional e da profundidade filosófica na poesia. Se, por um lado, a linguagem coloquial pode empobrecer a riqueza das emoções, por outro, ela pode intensificar a autenticidade e a força de ideias complexas. Eu busco um equilíbrio, utilizando a linguagem coloquial para comunicar de forma eficaz, sem abrir mão da emoção e da reflexão.   

R. N. – De que forma a presença ou ausência de elementos líricos tradicionais, como rima, ritmo e musicalidade, nos poemas de Um Elogio à Preguiça e Amor Fati contribui para a construção de uma poética antilírica e como essa escolha se relaciona com a temática central de cada livro?



G. M.  Ambos os livros se caracterizam pela ausência marcante de elementos líricos tradicionais. Em Um Elogio à Preguiça, a forma livre e a concisão dos poemas reforçam a ideia de uma poesia despojada, sem artifícios, que valoriza a comunicação direta e a reflexão sobre o cotidiano. A ausência de rima e ritmo contribui para o tom antilírico, aproximando a poesia da prosa e enfatizando a “preguiça” do poeta em se submeter às regras formais. Em Amor Fati, a forma livre persiste, mas a temática filosófica imprime um ritmo diferente aos poemas. A reflexão sobre o destino e a existência ganha força na cadência das ideias, na fluidez do pensamento, e não na musicalidade dos versos. A ausência de lirismo tradicional, portanto, não empobrece a poesia, mas a direciona para outros caminhos expressivos, mais alinhados com a temática e com a proposta antilírica de cada livro.   

R. N. – Por fim, gostaríamos de agradecer por abraçar nossos projetos, em especial o “Navalhar é preciso”, e dizer que o espaço estará sempre aberto. Inclusive, use o abaixo para falar sobre o que desejar. Liberdade total, Giovani Miguez.

G. M. Ao tocar minha obra, os leitores perceberão  que minha trajetória poéticabé uma busca existencial que se entrelaça com a reflexão filosófica e a crítica social, uma espécie de anamnese intelectual. Minha poesia, marcada por um antilirismo que valoriza a linguagem coloquial e a forma livre, busca aproximar-se do leitor contemporâneo, convidando-o a um reencontro com a poesia que pulsa no mundo.

Eu contraponho a visão do poema como monumento, defendida por poetas como Antonio Cícero, ao concebê-lo como um documento existencial. Meus versos funcionam como testemunhos da experiência humana, capazes de produzir memória, projetar futuros e, se não soar arrogante, polinizar outras inteligências.

Convido você, leitor, a explorar meu trabalho poético em meu site www.giovanimiguez.com.br. Mergulhe em minha proposta estética e encontre na força de minhas palavras um espelho para a sua própria existência. Permita que minha poesia documental e existencial o conduza a um reencontro com a poesia que reside no mundo, aguardando por espíritos sensíveis para decantá-la no grande poema que é a vida.


Giovani Miguez

Giovani Miguez é poeta, escritor e servidor público. Especialista em Sociologia e Psicanálise, mestre e doutor em Ciência da Informação, com formação em Biblioterapia e mediação de leitura. Nascido em Volta Redonda (RJ), hoje reside no Rio de Janeiro. É autor de  15  livros, entre eles os recentes Um elogio à preguiça, Amor fati e Notações paridas (Uiclap, 2024). Na sua poesia, Miguez explora a expressão e reflexão existencial. Ora lírico, ora político, ora científico, mas sempre est(ético), o poeta segue sendo profundo em suas generalidades.

5 comentários

  1. Angela Freitas

    Giovani é sempre sensacional. É sempre uma sessão de aprendizagem interagir com ele, seja presencialmente ou virtualmente. Sua capacidade de expressão nesta entrevista faz com que a leitura seja fluida e rica. Parabéns, Giovani. Sua voz é necessária neste mundo caótico.

  2. Vou sempre repetir o quanto sua Poesia é importante para mim ! Assim como você precisou “sangrá- lá, ” eu precisei dela para conectar – me à realidade ( nesse caso a minha !) Sempre serei grata por sua Poesia funcionar como a voz da razão e do coração ao mesmo tempo ! E sempre será assim enquanto escrever e eu ler !

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