LEONARDO CASTELO BRANCO – O silêncio sideral da biblioteca [conto]
LEONARDO CASTELO BRANCO – O silêncio sideral da biblioteca [conto]

LEONARDO CASTELO BRANCO – O silêncio sideral da biblioteca [conto]

Não fosse a demissão, a história de Margareth Carmona seria outra. A rotina regrada começou a ser transfigurada após sua saída da biblioteca, onde prestou serviços por décadas. O motivo não está ligado à falta de competência, já que Margareth era uma funcionária devotada e assertiva: a biblioteca estava prestes a fechar as portas. Sinal dos novos tempos, em que e-books exterminam o cheiro do papel das estantes recheadas de ciência e sapiência. O local seria demolido para dar lugar a um centro comercial.

Longe do trabalho, a primeira coisa que cortou seu coração de bibliotecária foi a ausência do convívio com o silêncio sideral da biblioteca. Um silêncio de bocas fechadas e mentes escandalosas, povoado por ideias e aprendizado. A verdade é que Margareth estava perdida e, longe de seus livros e estantes, sentia-se comum e ordinária. Logo foi abatida pela insônia. De início, achou que era algo passageiro. Mas o sono não vinha. No dia seguinte – e no dia depois – a mesma coisa. Foi quando, na última noite antes da demolição, Margareth foi tomada por um sentimento urgente e enérgico e se deixou levar por ele.

Tomou um longo banho, colocou um vestido de linho preto, salto alto e se maquiou com calma e esmero. Demorou-se em frente ao espelho. Sentia-se mais jovem do que quando era, de fato, jovem. Então, após tal constatação, saiu rumo à biblioteca, levando consigo uma garrafa de vinho. Lá, foi imediatamente invadida por uma servidão emotiva: arrumou os livros e tirou o pó das estantes, como fazia todas as manhãs. Depois bebeu e dançou com o silêncio.

O dia amanheceu, as horas passaram, até a biblioteca ser aberta pelo ex-chefe de Margareth. Ao entrar, ao lado de uma garrafa de vinho jogada no chão, ele encontrou  o corpo de sua mais eficaz funcionária. Ela estava próxima a mesma cadeira que sentou por décadas. Preso à mão de Margareth, o seu último pedido, escrito a mão: “Me enterrem aqui”.


Leonardo Castelo Branco

Leonardo Castelo Branco nasceu em São Paulo e é escritor, redator e roteirista. Em 2017, escreveu o livro ‘O colecionador de emoções’, a biografia de Oscar Maroni. Em 2020, seu conto “Edifício Fantasia” ficou em terceiro lugar na competição nacional de contos da 32º Semana de Letras da UNESP. Teve poemas poemas selecionados no Concurso Nacional de Poesia Oracy Dornelles, no 2º e 3º Festival Literário de Viçosa e no 32º Festival de Poemas de Cerquilho. Foi publicado nas revistas literárias Subtextos, Sucuru, Mirada Janela, Brasilis e Ruído Manifesto. 

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