ISABELLA INGRA – Ave rapina [conto]
ISABELLA INGRA – Ave rapina [conto]

ISABELLA INGRA – Ave rapina [conto]

 Rosa nasceu na cidade de Bom Conselho, em Pernambuco. Foi uma criança muito feliz, passava as tardes brincando em sua rua, uma rua estreita e sem saída. Sua mãe tinha um bar pequeno, as paredes no cimento e cerveja sempre gelada. Os adultos sempre olhavam para ela e pensavam que, apesar de estar sempre correndo com os meninos mais bagunceiros da rua, apesar de nunca ter sabido de seu pai, era uma menina meiga e educada. Rosa foi crescendo e a vida foi tomando conta de tornar Rosa uma menina silenciosa, um tanto romântica e bela em seus rastros. Rosa foi crescendo e mostrando como seu interior era um mistério para muitos ali e mesmo para ela. Quando a menina completou dezoito anos, sua mãe fez a passagem e deixou para ela uma pequena casinha em Bom Conselho, mas apesar da falta que a mãe fazia, foi naquela casinha que Rosa se sentiu livre. Livre para ser silenciosa e sozinha, coisa que duraria quase nada em sua vida pacata. O antigo bar da sua mãe, agora era uma mercearia, ali Rosa vendia seus bolos, absorventes para outras garotas e leite. A casinha que sua mãe deixou, agora tinha o cheiro e o jeito da Rosa. Um sofá amarelo na sala, uma mesa de bar na cozinha e uma cama de solteiro. Rosa pensava frequentemente em voltar a estudar, mas isso nunca acontecia. Sua vida pacata não a incomodava, mas em algumas noites, não podia dormir pensando nas coisas que ela poderia ter conquistado, nas suas primas que faziam mestrado na Europa e quando conseguia pegar no sono, sentia uma presença em sua nuca, tinha o terrível dom de sentir que apesar da solidão, não estava sozinha, desde muito nova, imaginava que a lua podia se comunicar com ela, coisas imaginárias que a solidão nos dá de presente, também os pássaros e as pedras, mas isso lhe era tão secreto que eu não deveria nem escrever aqui.

 Foi em uma dessas noites que sua vida pacata morreria para sempre, basta um movimento e o mundo muda, vira do avesso. Rosa não podia dormir, era uma sexta-feira, dia seis de junho, por volta das onze da noite, o lençol estava completamente suado e ela sentia um vapor em

sua nuca, o ventilador já não funcionava e o calor era insuportável, decidiu abrir a porta da sala e pegar um ar, sabia que nesse horário não haveria ninguém na rua. Quando abriu a porta, avistou um pássaro grande no muro de seu quintal, era uma ave tão silenciosa quanto uma coruja, Rosa sentiu medo, o pássaro parecia querer penetrar em sua alma, encarava Rosa fixamente como um homem, o medo absoluto tomou conta do seu corpo por um momento e depois, repentinamente, Rosa voltou a dormir um sono pesado, tão pesado que só conseguiu acordar às onze da manhã. Preparou seu café, tentava não pensar no pássaro, no vapor em sua nuca naquela noite, se ao menos tivesse um namorado, uma amiga leal, mas não havia nada, era ela para ela mesma, estava na vida estranhamente sozinha.

 Naquele mesmo dia, ao fechar seu mercadinho, um homem alto estava diante da sua porta, tinha o cabelo escuro e a pele rosada, usava chapéu de couro, carregava uma mala. Rosa, imediatamente sentiu uma pressão na nuca, mas ignorou a sensação por não saber o que ela representava, o homem lhe explicou que estava procurando por uma moça chamada Rosa, filha da Vera. Rosa, com medo, se apresentou para o rapaz e perguntou por que ele a procurava, assombrado com a notícia, perguntou para ela o que havia acontecido com sua mãe. Rosa lhe contara que o câncer a devorou, ele lamentou o ocorrido e em seguida, perguntou o que havia acontecido com o seu pai, mas Rosa lhe contou que nunca soube desse homem em sua vida e que sua mãe contava uma história sobre como ele a espancava, até que se cansou e sumiu no mundo. O rapaz prestou atenção na história e saiu sem falar para Rosa por que ele a procurou. Rosa não o deteve e o viu se afastar do seu mercadinho com o caminhar perdido. Naquela noite, mais uma vez, Rosa não dormiu, alguma coisa nela estava aterrorizada com aquele homem, aquela ave, aquela rua. Pela primeira vez, não havia nem mesmo o fingimento de tranquilidade naquele quintal. Ela estava disposta a pedir ajuda, mas não sabia elencar exatamente por que precisava tanto de alguém. Nem mesmo dormiu e foi de manhã à casa de uma velha conhecida da sua falecida mãe. Entrou e não conseguiu esconder seu rosto de apavorada, a senhora parecia esperar por aquela visita e foi quando disse:

— O que precisa saber, pequena criança?

— Preciso de saber sobre meu pai.

 O rosto da senhora transfigurou em raiva, mistura de medo também, mas lutou internamente para responder a verdade para Rosa.

— Seu pai morreu quando você tinha três, ele era extremamente violento com a Vera, que Deus a tenha. Seu pai só tinha amor por pássaros, sabia sobre muitas espécies e tinha muitas gaiolas no quintal, mas com a pobre da sua mãe…ou ele a matava, ou ela a ele.

— Como ele morreu?

— Morreu envenenado. Sua mãe o fez, mas não há culpa, ela fez isso por vocês duas. A família dele nunca procurou saber o que houve de verdade, mas são todos assim, todos estranhos como seu pai, eu estava no enterro.

 Rosa sentia um medo sem nome. Gostaria de pedir para ficar na casa daquela senhora, mas sentiu que deveria enfrentar o restante de sua história sozinha. Pensou no seu pai, parou em um bar, coisa que nunca havia feito, pensou na sua mãe e em como ela poderia ter escondido um evento tão inflamatório em sua própria existência. Pensou naquela casa quente e em quantas brigas aquele lar abrigou. Não tinha pra onde ir, dormiu no sofá em um desespero paralisado, só conseguia sentir a necessidade gritante de fazer suas malas e partir. Partir antes que aquele homem misterioso voltasse, partir antes que pudessem descobrir através dos seus olhos o que havia acontecido, aquela notícia, tudo soava tão familiar que era como se ela já soubesse desde do ocorrido. Foi aí que conseguiu dormir e sonhou com sua mãe. Seu corpo estava paralisado no sofá, não podia se mexer. Sua mãe se aproximou com um pote de veneno e tomou diante da filha. Aquilo era tão demasiado real, as lágrimas caíam dos seus olhos e quando conseguiu se mexer, caiu em um choro infantil e soluçante. Sabia também que naquele momento, a ave estava lá fora. A ave sabia tudo e se falasse, todos já saberiam.    Arrumou as malas com pressa para sair de manhã. Se despedia de cada canto da casa e quando pisou no quintal, viu primeiro o chapéu, depois os trajes do homem de pele rosada. Ela olhou para a ave como quem pedia por socorro. O homem andava lentamente até a porta e ela não podia se mexer, com muita calma ele disse: “Sua mãe era uma puta e chegou a hora da filhinha pagar o que ela fez ao meu irmão”, pegou entre os cabelos da moça e a arrastou pelo quintal, Rosa sentia o cheiro de morte alastrando o ambiente, o sol estava nascendo, ela pouco lutava para viver, ouvia, ao longe, os gritos da sua mãe enquanto apanhava, lembrava, naquele momento, tudo o que sua mente se encarregou de esquecer e quando ele apertou sua garganta, via sua mãe em um vestido fúnebre sentada no quintal. Até que, por milagre ou maldição, a ave rapina, um carcará glorioso, em golpes certeiros atingiu o homem nos olhos, arrancando suas vísceras como um animal selvagem. Rosa correu para longe e nunca mais parou de fugir.


Isabella Ingra

Isabella Ingra, nascida em Brasília (1993), é poeta, atriz e professora de literatura, mora atualmente em Macaé-RJ e escreve diariamente sobre os atravessamentos da vida. Se lança numa escrita performática, inflamatória e viva. Acostumada a fazer passeios por diversos gêneros, não costuma se prender enquanto escritora.

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