ISRAEL MOREIRA – O Coração da Quebrada [conto]
ISRAEL MOREIRA – O Coração da Quebrada [conto]

ISRAEL MOREIRA – O Coração da Quebrada [conto]

A quebrada nunca conheceu o silêncio. Havia o grito dos meninos que corriam atrás da bola descalços, o eco das sirenes que cruzavam as vielas, o estalo das portas batendo com pressa. E, no meio disso tudo, Marquinhos sentia uma ausência. Não era a falta de barulho, mas a falta de histórias. Aquelas que ele descobrira em páginas desgastadas e que, de alguma forma, o salvaram.

A primeira vez que entrou na biblioteca improvisada da escola Peixoto Monteiro, tinha 12 anos. Lembrava-se do cheiro de madeira velha, do som oco dos passos sobre o piso de cimento e da bibliotecária, que sorria mesmo quando ninguém devolvia os livros no prazo. Foi ali que conheceu Paulo Freire, que o ensinou que a leitura era uma arma. Também encontrou “Capão Pecado”, de Ferrez, e soube que suas próprias dores eram universais. A biblioteca era pequena, mas era um universo.

A ideia nasceu em um desses dias de lembranças. Por que não levar esse mesmo universo para a quebrada? Por que não criar um espaço onde o moleque que corria atrás da bola pudesse parar por um instante e abrir um livro? Ele sabia que a quebrada precisava de mais que armas e fuga. Precisava de sonhos. E livros são sementes de sonhos.

Começou pequeno. Marquinhos pediu ajuda nos encontros da militância, no grêmio estudantil e até nos botecos. Dona Cândida, sua avó, cedeu a garagem de casa, e juntos limparam o espaço. Um cartaz foi pendurado na porta: “Biblioteca Livre da Quebrada – Pegue, Leia e Devolva”. Livre, porque ali ninguém precisaria justificar sua curiosidade ou pagar para se aventurar em outras realidades.

Os primeiros dias foram de espera. A garagem, agora com algumas estantes improvisadas e livros doados, parecia vazia. Até que um menino apareceu, descalço, segurando um caderno velho. “Aqui é escola, tio?” Marquinhos sorriu. “Não, moleque. Aqui é onde as histórias moram. Escolhe uma.” Ele saiu com um livro de aventuras e voltou no dia seguinte, trazendo a irmã.

Pouco a pouco, a biblioteca ganhou vida. Um sábado, um grupo de jovens decidiu organizar um sarau. Trouxeram violão, poesia e risadas. Num canto, um senhor de cabelos brancos folheava um cordel. “Nunca aprendi a ler”, confessou. Marquinhos sentou ao lado dele e começou a ler em voz alta. Nas semanas seguintes, ele voltou, trazendo a neta para aprender também.

As crianças, antes barulhentas nas ruas, agora liam em voz alta dentro da biblioteca. As mães levavam romances emprestados para ler enquanto os filhos dormiam. O espaço tornou-se um refúgio, mas mais do que isso: um lugar de pertencimento. Marquinhos observava tudo, e seu coração se enchia ao ver o efeito que aqueles livros, antes esquecidos em prateleiras de outras casas, tinham sobre sua quebrada.

“Gostou?”, perguntou ele a uma menina de tranças que lia um conto. Ela levantou os olhos brilhantes e respondeu: “Gostei, mas queria mais. Quero escrever os meus.” Ele riu e entregou a ela um caderno. “Então começa hoje. Aqui o papel é livre também.”

A quebrada continuava barulhenta, mas agora com um som diferente: o som das vozes que liam alto, que discutiam histórias e inventavam outras. A biblioteca era mais que um espaço. Era um movimento. E no meio do caos que sempre existiu, Marquinhos viu que o coração da quebrada batia mais forte do que nunca. Não nas armas, mas nos livros. Não na violência, mas nas palavras.


Israel Moreira

Israel Moreira, jornalista nascido em Campinas, com 44 anos, negro e apaixonado pelas histórias das escolas de samba e seus personagens. Torcedor alvinegro e fiel à Vai-Vai, minha grande paixão no carnaval paulistano. Na carreira profissional, atuei em grandes veículos da imprensa em Campinas, como o Jornal Correio Popular e a Rádio Jovem Pan News. Atualmente, sou produtor na TV Record.

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