Entre Nietzsche e a poesia do cotidiano: Giovani Miguez faz o possível para amar o próprio destino
Entre Nietzsche e a poesia do cotidiano: Giovani Miguez faz o possível para amar o próprio destino

Entre Nietzsche e a poesia do cotidiano: Giovani Miguez faz o possível para amar o próprio destino

por Gustavo Freixeda,

escritor e navalhista assistente

(perfil completo)

Aceitar a vida como ela é, com suas perdas, desvios e epifanias discretas, não é exatamente fácil. Mas é exatamente essa a peleja do poeta Giovani Miguez em Amor Fati e Outros Poemas Dionisíacos. Ao reunir mais de cem poemas sob o signo do conceito nietzschiano de amor fati (amar o próprio destino), Miguez apresenta aqui uma espécie de crônica lírica da aceitação, uma travessia pela vida tal como ela é: complexa, contraditória, intensamente vivida. E, talvez por isso mesmo, digna de ser amada.

Publicada de forma independente, a obra sapateia sobre o palco instável que é a vida quando aceitar o real deixa de ser lema filosófico para se tornar uma tomada de posição política diante da existência. Não se trata de resignação, mas de uma forma de habitar o mundo sem tentar anestesiá-lo.

O livro se organiza como um diário lírico e ético-existencial. Miguez escreve como quem tenta, pela palavra, dar sentido ao que fere, ao que cansa, ao que pulsa. Há dor, dúvida, crítica política, reflexão sobre o trabalho, sobre a poesia, sobre o país. E há também confissões simples, às vezes quase crônicas, às vezes pequenos haikais urbanos. Não se trata de um livro hermético, o autor quer ser entendido. E, não à toa, seu lirismo é direto. Logo nos primeiros poemas, essa proposta se torna clara. Nada de grandes eventos ou de paisagens extraordinárias, mas um olhar para o cotidiano para tentar encontrar ali algum sentido. A poesia se torna, assim, uma forma de acolher a vida como ela vem.

Muitos dos versos têm algo de bilhete, confissão ou meditação em voz alta. Tem espaço para o amor, para a política, para o trabalho, para o cansaço, para a memória afetiva e até para o humor. O conjunto dos poemas oscila entre o pequeno e o grande, entre a rotina e a filosofia, entre o engajamento e o lirismo existencial. Paternidade, nudez, política, religião, solidão, trabalho e, claro, poesia. A obra ecoa temas nietzschianos (Dionísio é presença simbólica constante), mas também conversa com uma vivência urbana e brasileira (há algo mais brasileiro do que um uber fascista?).

A política, aliás, atravessa o livro como parte do chão movediço por onde o poeta caminha. Está nas brechas das relações sociais, nas assimetrias do cotidiano, e não o faz como panfleto, mas como experiência vivida, sentida e escrita. Em Religações, por exemplo, Miguez propõe um olhar para as origens indígenas e africanas como ponto de reconexão com uma existência mais plena. Em Lirismo Socialista, questiona o lugar da poesia diante do sistema. Nessas passagens, o livro demonstra uma vontade forte de integrar o pessoal ao coletivo, o sensível ao histórico.

Mesmo não sendo uma obra que aposta em experimentalismos ou grandes construções, Amor Fati encontra sinceridade na proposta. Não quer ser um monumento à poesia, mas um gesto de aproximação. Palavras como companhia, não como espetáculo. O poeta não busca redenção, busca presença. E, ainda que sua poesia nem sempre atinja grandes alturas formais, ela valsa com um desejo genuíno de dizer algo.

O conceito de amor fati voltou à cena recentemente, sendo o fio condutor da tão amada e odiada season finale da terceira temporada de The White Lotus. Está em alta. Mas, lá, foi símbolo de uma resignação elegante e um tanto amarga. O amor fati de Giovani Miguez, porém, parece seguir outro caminho: não o da renúncia, mas o de estar. Amar o destino, aqui, é uma forma de afirmar a vida, mesmo nas suas arestas mais ásperas.
Amor Fati não é um livro que vai atrás do aplauso. Ele quer companhia. Para quem busca uma leitura que ecoa dilemas contemporâneos e que se ancora numa ética da aceitação sem submissão, ele oferece a chance de ouvir uma voz que tenta fazer as pazes com o próprio destino.


Giovani Miguez

Giovani Miguez é poeta, escritor e servidor público. Especialista em Sociologia e Psicanálise, mestre e doutor em Ciência da Informação, com formação em Biblioterapia e mediação de leitura. Nascido em Volta Redonda (RJ), hoje reside no Rio de Janeiro. É autor de  15  livros, entre eles os recentes Um elogio à preguiça, Amor fati e Notações paridas (Uiclap, 2024). Na sua poesia, Miguez explora a expressão e reflexão existencial. Ora lírico, ora político, ora científico, mas sempre est(ético), o poeta segue sendo profundo em suas generalidades.

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