por Mayk Oliveira,
poeta e navalhista assistente
O livro “Impressões da Beirada”, de Fabiano Oliveira, é uma coletânea poética marcada por um lirismo reflexivo, existencial e imagético. Sua prosa poética está dividida no livro em dois passos; um deles que deixa rastros e o outro passo que junta os estilhaços na berma da estrada.
A “beirada” do título aparece como metáfora constante da existência, da linguagem, da memória e da identidade. Esse pensamento tem força poética e filosófica. A ideia de que a memória não tem contornos fixos, que ela se espalha como um mundo sem margens definidas, é potente. E quando tocamos aquela borda, aquela beira do abismo (que pode ser um trauma, um vazio, uma ausência), algo novo em nós se reorganiza formando, no choque entre o esquecido e o presente, a identidade.
E é na beira das coisas que se inscrevem as dúvidas, os deslocamentos e as tentativas de sentido. Para essa experiência a poética de Oliveira é apresentada como esse lugar de passagem, entre o visível e o não visto e o corpo e a recordação. A palavra “recordar” deriva do latim “recordare“, que significa “voltar a passar pelo coração”, ou seja, reviver uma memória ou experiência sentimental. Para Walter Benjamin “recordar é despertar lampejos de um passado que poderia ter sido esquecido para sempre”. E especialmente, no passo um do livro, que os poemas urgem por esses lampejos de pequenas faíscas de existência diante da vastidão do esquecimento.

O poeta vai aprofundando seus passos ao desenvolver a linguagem como matéria viva, falha, física e ao mesmo tempo espiritual. Seus textos estão repletos de lembranças fragmentadas, cenas da infância, imagens domésticas e memórias afetivas (a mãe, a avó, a infância na Baixada Fluminense) e também com os elementos cotidianos (a piscina seca, a poeira, a bolsa rasgada, a agenda escolar) os transformando em dispositivos poéticos que revelam questões profundas: o tempo que passa, a falha da memória, a permanência nos detalhes. Como já advertia Maurice Halbwachs, “a memória é sempre social; mesmo as lembranças pessoais se moldam na convivência com os outros”. Assim, as impressões individuais se entrelaçam com uma memória compartilhada, frágil e em constante reconstrução.
A escrita de Fabiano é marcada por uma fluidez quase narrativa, por vezes ensaística, por vezes contemplativas. O uso de imagens é delicado, com ritmo quebrado o que reforça a sensação de incerteza e transitoriedade. Outra característica marcante é o cuidado com o som, com a musicalidade do verso, com a justaposição de imagens. Esses elementos são inseridos organicamente como parte da voz do autor que é íntima e sensível. O corpo também aparece como suporte do tempo, do toque, da ausência e da impressão. Há um desejo constante de toque mesmo quando impossível. O afeto se apresenta na falha da comunicação, no gesto incompleto, no ensaio inacabado. Os poemas falam da dificuldade de se fazer presente, de amar, de lembrar, de pedir desculpas, de existir.
O livro Impressões da Beirada orbita principalmente em torno da memória como ela se guarda, se desfaz, se repete e se transforma. O tempo atua como o grande pano de fundo que corre, que se perde, que molda a identidade. Essa identidade-memória, no entanto, nunca é sólida: ela vive em tensão com o esquecimento e a repetição. Sobretudo revela que lembrar não é simplesmente guardar, mas um movimento frágil, cheio de retornos, repleto de perdas e reconstruções. Pierre Nora nos lembra que “a memória se prende a emoções e rituais; ela vive nos lugares onde a história tenta fixar o que se dissolve com o tempo”. Essa luta contra o apagamento, muito mais forte no segundo passo do livro, intitulado de “de volta para casa”, faz mover com mais força a epopeia poética de Fabiano Oliveira, ou seja, uma tentativa de imprimir rastros antes que o tempo os desfaça. O autor usa sua voz poética para imprimir marcas nesse tempo incerto e deixar algum rastro na transitoriedade da lembrança.
A memória talvez seja um mundo sem beiradas. É nesse território difuso, onde o tempo se dobra e as imagens se embaralham, que o poeta caminha. Lembrar é se reinscrever. Ele sabe quem é porque conhece os contos da sua mitologia pessoal e as lembranças construídas e herdadas coletivamente. E cada vez que retorna a esses fragmentos, encontra uma sombra, uma versão sua que existiu por um fio. A identidade não é um ponto fixo, mas algo que se ergue toda vez que se olha para a beira do abismo e se tenta nomeá-lo. Recontar é se reinscrever. O poeta, então, aprende a viver na sociedade como quem reaprende a falar com fantasmas, buscando nas bordas da memória a centelha que fará nascer, mais uma vez, um novo eu. O livro é a jornada entre a memória e o esquecimento, feita na beirada do tempo e atravessada pela temporalidade da voz humana.

Fabiano Oliveira (1991) nasceu em Nova Iguaçu e mora no Rio de Janeiro, onde trabalha como jornalista. É mestre em Ciências Sociais pelo PPCIS – Uerj. Atualmente cursa doutorado no mesmo programa. Já publicou poemas na revista Ruído Manifesto e acaba de lançar seu primeiro livro, Impressões da beirada (M.inimalismos, 2025).
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