Com a navalha: Carla Nepomuceno. Segue 7 poemas.

andanças
Algures, a minha voz ecoa em busca de liberdade
de caminhos longos e verdejantes
do silêncio iluminado
que atravessa os escombros e atmosferas da minha alma
Levanto os olhos, levanta-me a estrada longa
de baixo dos meus pés
Este chão que piso
desde o primeiro sopro
É apenas o lugar onde estive
Não se comovam
Estes gestos de melancolia
saudade e lembranças
Rasgam e costuram o meu ser intransitado.

domingos
eu não disse nada,
não podia
o pranto acompanha-me aos domingos
as lágrimas que jurei nunca derramar
não deixam de rolar pela minha face
domingos
domingos…
não me atrevo ao calendário
levanto-me
ergo a mirada
tomo uma xícara de café
olho, fervorosamente à imagem dos campos e árvores
é domingo, outra e outra vez
agarro-me as lembranças
é domingo
nunca gostei dos domingos
e eu não disse nada

alvedrio
Alcei os olhos,
pus-me de pé e sorri
Atónita frente a ele
Tinha um enorme buraco negro
Abria e fechava como o meu coração
vermelho
Encarnado com aquela luz nos meus olhos
As portas fecharam, uma nuvem encobriu o sol
vermelho
Buraco negro
A minha voz tomou forma
Estou em casa…
com essa luz que já não cobre o sol
Aquela luz dos meus olhos
Já estou em casa…
E entrei naquele coração que era p’ra ser meu

abarcamento
Ouço rumores
ouço palavras
Ecos que eu não emiti
quero pisar num chão que saberei meu
ecos… palavras imaginadas
quero alçar voo
Voo
vo…O
Ouço rumores de um chão meu…
Alcancei o soalho
já não me importa alcançar o solo
Alcei voo
Lembro-me do invisível
Dos rumores que me dizem: é aqui
É aqui: chão, terra, solo, voo
Voo

apenas eu
Atravessa-me um rio, um oceano
Esvazio-me
O meu corpo dança
Corpo sagrado
Mulher
Mansidão, vulcão
fleuma ardente
Calmaria. O meu corpo dança
Sagrado
Mulher
Abrasamento
Esvazio-me

Ela recolhe flores
no jardim encantado,
nas planícies imensuráveis.
Observam-a,
ficam quietas.
Elas são espetadoras do ato.
A melancolia existencial, guarda todos os segredos
passos, vestígios…
agora ela tem uma catana na garganta,
Agora ela é a rainha do submundo.

identidade
rostos
simetria do sujeito
As minhas condições desenhadas na roça
no campo, nas paisagens mato-grossenses
Identidade
Simetria do sujeito
Eu… sujeito
As minhas condições perpassam
campos, flores, corixos, rios, riachos
Siriri, Cururu
cavalhada…
simetria do sujeito
O meu corpo-casa
desenha no desenho do Pantanal
Convocando as minhas próprias riquezas
Livre dentro de mim.

Carla Nepomuceno nasceu em Porto Esperidião, Brasil, a 20 de novembro de 1978. É professora da rede pública de ensino na Galiza. Mestra em Literatura, Cultura e Diversidade no âmbito galego-português e mestra em Educação. Obras publicadas: Entre Rabiscos: Atividades de vocabulário (Flamingo, 2022) e Não Prometo o Nenúfar (TAUP, 2024). Participou das Coletâneas Invisíveis Olhares (2022), Sombras. Tempos de escuridão. Tempos de Luz (In-Finita, 2022), Conexões Atlânticas VIII (In-Finita, 2023), Antologias Entre O Sono e o Sonho (Chiado Books, 2023), Poesia BR5 (Editora Versiprosa, 2023), Antologia Liberdade – Vol. III e Antologia Minha Mãe – Vol. I (Chiado Books, 2024), Coletânea Doce Feito Caju (Ed. África e Africanidades, 2024), Coletânea Eu Conto, tu pintas (Ventos Sábios, 2024), Coletânea II Tomo das Bruxas: Corpo & Memória (TAUP, 2024), Coletânea Mulherio das Letras Portugal (In-Finita, 2024), Coletânea Conexões Atlânticas (In-Finita, 2024), Caminho-Décima Colectânea Internacional (Andrómena Senlleira, 2024).
Parabéns minha amada professora sempre te admirei ❤️