A navalhista do dia é Andressa Leonardo. Ficaremos com 4 poemas do livro As coisas que não podemos embrulhar (Editora Minimalismos, 2024)

Liberdade
a sós nas irregularidades do asfalto
na estrada minha mãe com as mãos no volante, eu ao
lado com os vidros abertos na posição transversal
no tórax sinto
a melodia da música acompanhando as curvas
que parecem barrigas gestantes de gêmeos fazendo um
ziguezague como um cordão umbilical ligando o feto a
mãe, acho que a maternidade não me pertence porque não
desejo ter filhos
seu rosto concentrado no movimento de idas e vindas
dos carros como quem passa a noite inteira acordada
cuidando de um recém-nascido
respondeu que sei parir poemas
e isto seria suficiente:
ter netos que não choram, apenas fazem
vez ou outra
as pessoas chorarem.

Intimidade
seguro a página com força
miro a dedicatória
aprecio a epígrafe
passo pelo prefácio tímido
vou descendo o sumário desalinhado
toco as linhas confluentes
desvendo a primeira parte
íntima
sinto a saliva de cada célula viva
no meio, um
trava-língua
adentro
l e n t a m e n t e
nas miudezas
me envolvo
o coração
queima
a respiração enfraquece
[a gente se molha]
a folha desmancha
– rasga no final.

Sabedoria
uma senhora vizinha que era benzedeira
falava pouco
comigo trocou três frases durante anos
me passou seus ensinamentos
quando precisar reconstruir o corpo,
após um ciclo enterrado, alimentar-se
de silêncio buscando luz até que a matéria se sinta pronta
para erguer-se do chão
colocar o amor no centro, o sentido para todos os sentidos
e sorrir em todas as estações,
pois quem tem o outono
não precisa rezar de joelhos sobre o jardim da primavera.

Erro
a mãozinha pequena me fez um sinal tia eu não quero
comida me dê um dinheiro qualquer quantia eu quero
comer mas não quero comida a mãozinha pequena
estendida encardida na minha frente me dê um dinheiro
eu tenho mais quatro irmãos estão na outra rua qualquer
dinheiro porque não sei contar direito mas eles sabem
e me batem se eu não entrego nada me dê um dinheiro
minha mãe está ali no acostamento a mãozinha pequena
se esconde no bolso eu abro a bolsa intimidada não tenho
nada meu querido mas posso comprar algo para você e
seus irmãos com cartão e vocês
me erra tia parece que você é burra a mãozinha pequena
apontando o dedo na minha cara me erra tá maluca meus
olhos fixaram nos seus e eu não via mais a mãozinha
pequena me erra gritou de novo antes de correr e virar a
esquina me fazendo pensar o quanto eu errei mesmo mas
ele me acertou e ficou eternizado neste poema que, por
todos os nossos erros, jamais chegará na sua mãozinha
pequena.

Andressa Leonardo nasceu em 1993 na cidade de São Carlos (SP) e brinca com as palavras desde criança. É linguista pela Universidade Federal de São Carlos, comunicadora, locutora, produtora de atividades culturais, ministrante de oficinas de escrita na Agama Cult e autora do livro de poesia As coisas que não podemos embrulhar.