“Viver? Nunca estarei preparada para esta emboscada”, é o que diz a personagem de Perdeu vontade de espiar cotidianos (Editora Nós, 2023), num dos raros momentos em que de fato ela se coloca no texto. Apesar de cada página ser sobre a tentativa (vã?) de apresentar essa personagem, pouco se sabe sobre. Sabemos que se trata de uma senhora com 86 anos, que mora sozinha num casarão abandonado, vivendo sob o peso e efeito de um certo acontecimento. Ainda era bem jovem, mas ele está ali: norteando cotidianamente seus desvarios-mergulhos metafísicos.
E por falar em metafísica, lembremos por alto o conceito de ontologia. Partindo de sua etimologia, do grego: ontos (ser) e logia (estudo). O ramo geral da metafísica que se debruça sobre as questões gerais relacionadas ao significado da existência e do ser. Evandro Affonso Ferreira põe no centro de sua narrativa uma quase nonagenária senhora que, “com seu olfato metafísico”, “especializou-se em afagar abstrações para estancar, arrefecer urgências”. Na varanda, a cadeira de balanço é de tal importância que é o único móvel da casa que conhecemos.
Aliás, não passamos da varanda. Porque o espaço físico não tem a menor importância para o desenvolvimento da narrativa. Essa que é uma narrativa-mergulho nos mergulhos metafísicos de “nossa antológica personagem” — termo que aparece dezenas de vezes no livro. Seguidas tentativas de nos fazer adentrar na mente de alguém que por vezes adota a postura niilista de negar o seu entorno em função do seu “laboratório abstrato”. Seus pensamentos. Suas inquietações sobre o entendimento de si e do outro. E aí reside sua força. Sua resiliência “estoica” — outro conceito caro ao texto de Evandro. É daí que não sabemos se chegamos a conhecer de fato “nossa antológica personagem”. Não conseguimos transcender ao campo das possibilidades. “Hipóteses. Somos todos narradores de infinitas pressuposições.”
Sobre o texto em si, fica a cargo do leitor decidir se estamos diante de uma leitura fácil ou não. Como sabemos, uma das características do autor é fazer uso de um vocabulário mais rebuscado, usando aqui e ali palavras pouco usadas em nosso cotidiano. Sim, o leitor pode precisar ir ao dicionário duas ou três dezenas de vezes durante a leitura. Eu fiz isso pouquíssimas vezes. Não que eu tenha familiaridade com todas as palavras usadas. Acontece que ficar parando para correr atrás do significado compromete mais o entendimento da obra do que não confiar na intuição de leitor, já que na maioria das vezes o contexto entrega o significado da tal palavra. Mas é importante frisar: com o entendimento de algumas palavras-chave a leitura fica mais fluida. Some-se a tudo isso o fato de não termos propriamente um enredo. O narrador tentar fazer o leitor mergulhar nos mergulhos da “nossa antológica personagem”. O que, pra mim, o entendimento de uma ou outra palavra não vai comprometer a leitura.
O texto é curto. Um romance de 85 páginas. Sim, o gênero novela vai acabar. Não se fará necessária essa denominação. São as urgências de nosso tempo. E ainda sobre nosso tempo: vale lembrar que Perdeu vontade de espiar cotidianos é semifinalista do Prêmio Oceanos. Não me surpreenderia se a “antológica personagem” de Evandro Affonso Ferreira levasse o prêmio.
Sobre o autor do livro:
Evandro Affonso Ferreira é autor de vários romances, entre eles: Minha mãe se matou sem dizer adeus (Record – Prêmio apca Melhor Romance); O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam (Record – Prêmio Jabuti Melhor Romance do Ano); Não tive nenhum prazer em conhecê-los – Record – (Prêmio Bravo! Melhor Romance do Ano); Nunca houve tanto fim como agora – Record – Prêmio Machado de Assis, Biblioteca Nacional, Melhor livro do Ano e Prêmio APCA Melhor livro do ano.