SANDRA MODESTO – Naquela estação [conto]
SANDRA MODESTO – Naquela estação [conto]

SANDRA MODESTO – Naquela estação [conto]

Eu tinha 16 anos e uma noite perdida no tempo. Era inverno, era uma festa de despedida na escola. Quase todos me notaram e senti que era por causa da minha roupa. Minha blusa branca com mangas compridas, uma calça de brim azul e um par de seios crescendo. Pedro me tirou para dançar, o amigo de meu pai que estava passando uns dias lá em casa. Ele tocava violão. Eu gostava disso. Apenas disso.

 Mas na noite da minha primeira liberdade, eu flutuava na pista de dança, um moço de olhos azuis, cabelo cacheado com perfil de gente do bem, dançou comigo, me puxou até o fim do corredor, lascou um beijo na minha boca, passeou a língua na minha acreditando que podia tudo, e foi tocando meu corpo. Eu fugi. Catei minhas forças até chegar ao bar da esquina.

— Seu Ernesto tem caipirinha? ­

— E você bebe,  menina?

— Não sei.

Cheguei antes das onze, minha mãe dormindo no sofá, o aparelho de TV ligado sozinho pelo canto. No meu quarto eu limpei minha boca, não pelo gosto do álcool, sim por causa do beijo que eu não pedi.

No café da manhã eu rezava em silêncio e pedia a Deus para o Pedro ir embora.Minhas preces foram ouvidas. Apaguei a dança da memória.

A rotina da família voltou a brilhar na casa. Meu tio pegou a gaita como sempre o fazia.  Entoando uma canção ao amanhecer, nas tardes cabíveis e em noites chuvosas.

Nesses anos quando a vida sopra, perdi meu tio, minha mãe foi velada na sala da nossa casa,  meu pai, também morreu. Antes da minha mãe.

É quase verão. A foto dos meus pais está rasgada, porque estava num álbum e, abruptamente, eu puxei.

Acordei quando minha coluna fez um estalo: crec!

Meus filhos querem almoçar.

Por que eles sentem tanta fome?

A pia amontoada de louças. Minha coluna não está tão ereta e tomei um analgésico para engolir a dor.

Fiz umas pausas e rabisquei alguns textos. Muitas histórias precisam ser libertas.

— Mãe, você escreve? Escrevo. Só não gosto de cozinhar.

— E gosto de ler, viu?

Vinicius me olhou, balançou suavemente a cabeça, entrou no quarto, fechou a porta com uma placa: Não enche.

Vitória foi estudar com a namorada.

E muitos anos se passaram. Afonso, o último a entrar na história, me encanta com uma canção de amor.

Depois de trinta e cinco anos juntos num mesmo lar, nem sempre doce, a gente ainda se amava. É um caso de amor em meio a janeiro sorrateiramente manso e forte.

O bar de seu Ernesto não existe mais. Agora, o filho dele abriu uma pastelaria na praça da prefeitura. Com uma clientela fiel. Não tem caipirinha, mas tem pastel e garapa. Seu Ernesto está velho demais para vida noturna.

A escola fechou. Eu procurei um lugar na minha memória para eu me lembrar apenas das aulas de português.

Num estalo tudo muda no corpo, na vida. Me matriculei numa academia que tem Pilates. Não sinto mais dor na coluna.

Na varanda, deslizo meu corpo no chão como uma menina. Aquela menina de 16 anos me abraça.

É verão. Pedi uma cerveja no bar da esquina. Espero não chorar sozinha igual minha mãe quando cortava cebolas.


Sandra Modesto

Sandra Modesto é mineira de Ituiutaba. Graduada em Letras. Professora aposentada. Autora de quatro livros: Acenda a luz, prosa poética,editora Kazuá, 2015; Tudo em mim é prosa e rima, editora Autografia, 2019; Era sábado, crônicas, Kotter editorial, 2022; Sonhos e perdas & outros contos, editora Patuá, 2023. Finalista do concurso microconto de ouro, Casa brasileira de livros, 2022. Textos publicados em antologias Textos publicados em revistas digitais e impressas.

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