RUBIA VIEGAS – 7 poemas
RUBIA VIEGAS – 7 poemas

RUBIA VIEGAS – 7 poemas

A navalhista do dia é Rubia Viegas. Da poeta segue 7 poemas:

Revista O Navalhista

Inverno

Às vezes a vida é como um dia de inverno

escuro e chuvoso

um café amargo e frio

na porcelana requintada

que não disfarça o fel.

Há que se persistir na credulidade

apesar do amanhecer incerto

do sol desmatizado e de nuvens despoéticas.

A vida, por ora, chega a ser um licor biliar

a alma fica recolhida dentro do corpo desviçoso

a natureza não se acredita

e esperança é apenas um polissílabo.

O hoje é desnutrido e insosso

compota sem calda

a desvida não se convida

entra e arrebata o átomo

do meu desejo.

Por quem a distimia me toma?

uma alma desistente e combalida?

Qual! de peçonha fiz antídoto

nasci com gana de vida

e assim me asseguro até morrer.

Amanhã é outro dia

pode ser o mesmo talvez

depende da paisagem que me comove

dentro e fora de mim

sei que farei o melhor

para me servir

do mais saboroso café

de goles de licor de maracujá doce

e da compota mais perfeita dos deuses.

Revista O Navalhista

Passagem

Quando a meninice se foi

a paisagem amareleceu dentro de mim

calado, o vento ignorou

o embaraço dos meus cabelos o mar não mais me convidou

para ali sereiar

a chuva densa desfez

a amarelinha riscada no chão.

Quando ela se foi

certa malícia sombria e sorrateira

apoderou-se do meu corpo

principiante

ingenuamente fértil

vasculhei, relutante, tudo o

que me era mágico,

em vão do tempo dos sonhos o

tempo se desfaz com brevidade.

Assim, amanheci um dia cara a cara com as

incongruências da vida amadurecendo na dor

menos no amor

com tanta obrigação de ser gente grande

da noite para o dia, mulher.

Revista O Navalhista

Nuvens do Eu

Nessa imensa cena etérea 

Vislumbro cantos escondidos de mim 

Maviosa ilusão azul 

Barrões assustadores outros angelicais 

Antigos desejos meus reciclados 

Saltos de inocentes carneirinhos 

Lambidas de algodão doce

Tempos idos 

Dispersam-se velozes sob o jugo do amado vento 

Brincam entrosadas branqueando o anil 

Outras formas obscuras, vagueiam desnorteadas 

Formosuras andantes, esculturas incógnitas

Partes de mim, nuvens do eu. 

Revista O Navalhista

Existência

Se viemos do mundo 

Por um ato aceito ou rejeitado

Chegamos para enriquecer ou subtrair o inexistível 

Se crescemos em berço forte

Sugando a fartura do peito ou sobrevivendo pela rebeldia

Lembremos que assim receberemos àqueles que de nós virão

Se assim for, por prazer ou inevitável 

Gestado no afeto ou em meio à aflição 

Propagado ao vento ou disfarçado

Contemplado ou resignado na indiferença 

Assim será fatalmente

Se não identificarmos no íntimo

Os próprios sentimentos de abandono ou aconchego 

Que nos despertem para o existir de nossa cria 

E perpetuem enfim o irresistível amor. 

Revista O Navalhista

Grossos Pingos

O barulho escandaloso me acorda

Grossos pingos, chuva de canivetes

O velho Pedro está surdo, alto-falante de quartéis

Reviro na cama, excomungando os ouvidos

Durma-se com um barulho desses!

Abriram-se as comportas do céu ou minha enxurrada de ideias

Cubro a cabeça, descobrem-se os pés

Ah! Rock pauleira de anjos cruéis

Abro a janela e grito ao céu

Ô de cima, já passa das dez!

Balbucio… meu queixo caído, o que é isto?

Trocaram o cenário do céu? 

Um painel estrelado purpurina o luar

Contemplo a lua mais perfeita de verão

Nenhuma tempestade diluviana

Ao contrário, apenas sonatas de cigarras tranquilas 

Aturdida, fecho a janela

Chove forte no meu rosto, olhos com goteiras imensas 

Sob a enchente meu peito dessaturado 

Grossos pingos caem dentro e somente sobre mim.

Revista O Navalhista

Estrada

Estanco-me catatônica 

Como parar essas rodas aceleradas

Que deslizam enfreáveis para o nada

Planícies e planaltos, tobogãs gigantes 

Vales quanto me pesam, casinhas de cercas brancas

Que não me encantam…

Pastagens de mochos rodeados de mosca

Meus olhos não dão conta, nauseados

Vomitam sal amargo e adormecem

Parem o motorista, esse sádico cinegrafista 

Que me leva à revelia

Desatem o cinto de segurança 

Preciso urgente do tapete mágico 

Há algum Aladim a bordo

Não posso mais ir e voltar 

Humanamente… até não sei quando. 

Revista O Navalhista

TOC

Acordei com humor bissexto

De sexta-feira treze de agosto

Pelo menos da janela, nenhum corvo cínico me espreita 

Apenas a grade cela o quarto

Estarei salva se desviar de escadas

Ou descolorir o gato

Esse ranço não me pertence

Agouro nenhum me encarcera 

Presságios não me tornam crédula 

Contudo, melhor prevenir do que levar um susto 

Ainda que de nada sirva 

Na bolsa, afinal, não pesa 

Um pezinho de coelho e meu patuá vermelho 


RUBIA VIEGAS

Rubia Viegas. Desde pequena, sou apaixonada por escrever. Cresci em uma casa com uma biblioteca que reunia grandes autores brasileiros e minha tia sempre trazia novos livros infantis, que eu adorava reinventar com finais diferentes. Na adolescência, passei a criar histórias inspiradas nos meus vizinhos. Minha formação acadêmica, desde o magistério até o ensino superior, fortaleceu essa paixão. Como psicoterapeuta, explorei histórias inventadas pelas crianças e por mim. Escrevo crônicas sobre o que me indigna e carrego sempre uma caderneta. Ler me transporta ao universo do autor; escrever me leva para dentro de mim, em uma viagem sem volta.

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