MILENA MARTINS MOURA – 7 poemas
MILENA MARTINS MOURA – 7 poemas

MILENA MARTINS MOURA – 7 poemas

A navalhista do dia é Milena Martins Moura. Vamos de 7 poemas do livro O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão (Aboio, 2023), que foi semifinalista do Prêmio Jabuti deste ano.

Revista O Navalhista

evangelho segundo o pecador

me quero aberta em cálice e vinho e pão

fenda rasgada de ritos

hábito deitado à fogueira

onde abrasam as peles recém-expostas

a carne viva pulsa porque viva

porque crua porque fera e primeira mulher

serpente e desfrute

me quero imersa corpo inteiro no indevido

lambendo o caminho desviado

com a mesma língua

dos cânticos

o sacro e o santo

molhados da espera

com a sede dos abstêmios

e dos crédulos em desgraça

e eu graal sacrílego

estou nua e disso não me envergonho

Revista O Navalhista

cinturão

tenho uma dobra vermelha na pele do rosto
como um corte

entranha

você viu

a marca vermelha da cama no meu corpo
branco
onde dói o sol

você viu
os meus sinais em coleção
imitando a pose ereta de órion

ombro em rigel pé em betelgeuse

as partes proibidas à mostra
faz calor
e eu tenho sede

todos os tabus desnudados

constelações

e eu ariadne corpo celeste
vindo jantar nos escombros

as pontas dos seus dedos mastigando os meus contornos

entranha

todos os lábios
mordendo
a fraqueza da carne

Revista O Navalhista

έρημος

acabei de ser minha própria caravana de bichos pálidos passando sede

acabei de ser a sede

o sino da igreja às três da tarde quando é quente

e uma brisa pouca e velha

arrasta o cheiro dos soluços

e entalha feições ao pé da boca

para marcar as horas

acabei de meter os pés no deserto tardio

que se deita ao sol

onde vêm os pássaros procurar em vão o de beber

porque têm pés feitos para o fogo

e eu que lhes sou grande e tenho mãos com poder de morte

acabei de ser minha própria caravana de bichos pálidos passando sede

com bocas abertas para o céu

minha própria matilha de bustos de areia

se debatendo pelo formato dos olhos

pelo nariz de ossatura protuberante

os lábios o de baixo maior herdado do pai

rosto desenhado com ângulos

orelhas desiguais

tudo isso que é meu e precisa ser mantido longe da chuva

para que não se desfaça

e de mim sobre apenas um deserto

que não sabe que tem sede

Revista O Navalhista

da culpa sob os dedos

toda palavra é muito pouca para enristecer os meus dedos

e os meus braços descamados pelo fogo

e as costas curvas

que abaularam os anos

para meter os olhos no conforto alheio

é muito pouca a palavra culpa

arrastando pesos

fósseis

que não estão no dicionário

a palavra voz imagino como uma bola de cores em dor

e calafrios nos ossos

estico os dedos e as culpas

e toco as culpas

agora

com as pontas dos dedos

e medos nas frestas da porta

a palavra continua pontiaguda

e difícil de descer sem miolo de pão

encontro nisso a beleza de um bicho faminto

pairando sobre as águas

feito verbo

declarando

nos dentes

e nos ossos mastigados

todo o amor

da fome

pela morte que a sacia

Revista O Navalhista

Nachash

o momento mais limpo é quando lambo as curvas dos teus dentes

por dentro e por trás

onde se guarda o rancor

arranco das frestas a culpa nas palmas e a memória dos castigos

o momento mais limpo

é quando invado tua boca para lavá-la

com as pontas da minha língua

cheia de vontades que não se falam na igreja

a minha língua foi desenhada pelas eras

apenas para o gosto das coisas curvas e quase líquidas

que não se pintam nos quadros de santos

tenta nos teus dentes

como trombeta e última sirene:

silêncio, é hora do risco!

estamos longe da primeira esfera

que é pura e fria e não bebeu do sangue

e por isso faz calor

no proibido

é hora do risco!

o momento mais limpo é o das carnes que queimam

Revista O Navalhista

antes que rompa o dia e fujam as sombras

todas as noites

com o advento das respostas que se descobrem em atraso

o sopro quente do tempo

me esquenta a nuca

junto com os feitos que não deviam ter sido

e os maus presságios

que não passaram

de covardia mitificada

todas as noites

a língua do tempo

me lambe o lóbulo da orelha

a direita

quando me deito para a janela

temendo as luzes rápidas no teto

a esquerda

quando me deito para o espelho

e não temo senão a mim

todas as noites

as mãos do tempo

correm nos meus peitos

estão secos e caídos para o lado

como um banquete deixado a apodrecer

pela falta da fome nas bocas

todas as noites o tempo enfia em minha boca a sua língua

antes que eu consiga recusar

balança a língua

atrás dos meus dentes

onde moram os choros engolidos

e as palavras perigosas

e no fundo da minha garganta

sente o ácido

 do meu medo de morrer

  misturado à amargura de estar viva

o tempo se esfrega

nas partes minhas

que são só minhas para esfregar

todas as noites

e a mim mantém desperta

para que não me esqueça

que todas as noites são noites a menos

todas as manhãs encontro em mim os restos do tempo

Revista O Navalhista

erros de ícaro

é a imagem desse cavalo

desenhado com os olhos nos defeitos da parede

ele desce em disparada

com a crina em chamas

apenas pelo desafio de evitar a queda

para que nasça um cavalo como esse

é preciso vento

e linhas imprecisas na pintura

texturas amarrotadas

e força nos membros

um cavalo em disparada

não é qualquer cavalo

é aquele que não se pode montar em criança no sítio

à criança em seu corpo pequeno

é permitido apenas sentar-se à parede e imaginar o cavalo

e as labaredas lambendo o vento

a corrida de um cavalo como esse

a mãe não permite

perna ralada em menina é feio milena

senta vê desenho milena

uma criança que cresce limpa

não conhece o vento

como o conhece o cavalo

e não se lembra senão do grito

que era um cavalo descendo em disparada

com a crina em chamas

porque o pintor de paredes errou

uma criança que cresce limpa e sem ranhuras

tem um vento sofrendo nos peitos

daqueles que derrubam prédios

quando correm

e abrasam os tabus que deus castiga


MILENA MARTINS MOURA

Milena Martins Moura é mulher autista, poeta, tradutora e editora da revista cassandra e da Macabéa Edições. É autora dos livros Promessa Vazia (Multifoco, 2011), Os Oráculos dos meus Óculos (Multifoco, 2014) e A Orquestra dos Inocentes Condenados (Primata, 2021), a plaquete Banquete dos Séculos (edição da autora, 2021) e O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão (Aboio, 2023), o qual foi indicado ao Prêmio Jabuti 2024 na categoria poesia. É mestre em Literatura Brasileira pela Uerj e doutoranda em Literatura Comparada pela UFF.

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