NIELS HAV – 8 poemas
NIELS HAV – 8 poemas

NIELS HAV – 8 poemas

 

“A poesia representa o senso comum das pessoas comuns, mas também os sonhos da selvagem alma humana. O espírito livre.” As palavras são de Niels Hav, no prefácio do seu A alma dança em seu berço, (Penalux, 2018). Elas sinalizam para o tom da poética do autor. A partir da edição inglesa, a tradução ficou por conta de Matheus Peleteiro e Edivaldo Ferreira. Tradução que foi elogiada pelo próprio autor: “fizeram um incrível e inspirado trabalho traduzindo meus poemas.”   

 

O PAGÃO

Dentro de mim vive um camponês acostumado a
ventanias,
sua alma pertence aos campos áridos
cobertos por urzes. Ele não confia
em Deus nem no Diabo.
Ele cozinha seu próprio ensopado e quebra
rochas com uma marreta pesada.
Ele é um pagão. Sente-se em família
com animais selvagens. Ver um humano
lhe dá calafrios por todo o corpo.

Ele frequenta a igreja aos domingos
para escutar o órgão. Por dentro,
ruge um grave profundo, sua alma emite vapor
como cimento em ebulição. Por fora,
ele cospe no cascalho. Deseja ir para casa
para o seu ninho.
Ele caminha entre as plantações
para ficar sozinho e mijar contra o vento.
Ele se sacode como um cão emergindo
do esgoto.

AMOR

É uma palavra tão grande.
Ou me engasguei com ela?
Amor, o que é isso
afinal?
Ao longo do tempo muitos trocam
um grande amor por uns trocados.
Eu te amo. E você arranca o plugue.
Eu te amo. E você atira meu livro
na parte de trás da minha cabeça.
Eu te amo. E o mundo explode.

Temos sede um do outro na ignorância,
como elefantes.

Sem crianças não há felicidade,
disse Schumann. Clara deu a ele
oito filhos como antídoto contra a melancolia.
Não foi o bastante.
Ele ficou louco, tentou suicídio
e morreu em um sanatório.
Ela tocava piano. Isso é o que
eles chamam de amor.

NÃO CONTRIBUAMOS COM O CHEIRO DO MEDO

Por que vocês se empurram com tanta força
no ônibus? O inverno já é sombrio o bastante
por si só.
O que sabemos de bondade
e de maldade? Não contribuamos
com o cheiro do medo.
A maioria das pessoas leva a vida
com extremo cuidado,
e qualquer um, que toda manhã comprometa-se
a ficar de pé, merece respeito.

CAÇANDO LAGARTIXAS NO ESCURO

Durante os assassinatos passeávamos
inconscientes ao redor dos lagos.
Você falava sobre Szymanowski,
eu estudava uma gralha
bicando cocô de cachorro.
Cada um enclausurado dentro de si mesmo
cercados por uma concha de ignorância
que protege nossos preconceitos.

Os holistas acreditam que uma borboleta nos
Himalaias
com um bater de asas pode influenciar o clima
na Antártida. Talvez seja verdade.
Mas onde tanques invadem
e carne e sangue pingam das árvores,
isso não é nenhum consolo.

Buscar a verdade é como caçar lagartixas
no escuro. As uvas vêm da África do Sul,
o arroz, do Paquistão, as tâmaras crescem no Irã.
Apoiamos a ideia de abertura de fronteiras
para frutas e vegetais,
mas pra onde quer que nos viremos
o cu está sempre na parte de trás.

Os mortos são enterrados bem fundo nos jornais,
para que nós, os não afetados, possamos sentar em
um banco

nas periferias do paraíso
e sonhar com borboletas.

O RELÓGIO DE PULSO DO MEU PAI

Dei corda no velho relógio de pulso do meu pai.
Por quase três décadas ele esteve aqui na gaveta
esperando para ser jogado fora.
Este era o relógio que estava com ele quando
trabalhava
com animais e pedras e terra.
Está riscado e marcado pelas coisas
nas quais se atracou, como nenhum outro relógio que
você veja hoje em dia, escurecido por merda de vaca
e suor.

Impulsionado por algo primitivo, um sentimento,
pego o relógio da gaveta e dou corda.
As engrenagens de segunda-mão avançam rápidas.
Super Shock Resist em letras miúdas
na parte da frente. Tenho meus olhos nos ponteiros,
de certa forma parece encorajador
assistir o velho relógio ressuscitado dos mortos.
O ponteiro funcionando, a hora exata.

Quando meu pai tinha minha idade, passava oito
horas por dia
no cemitério da igreja. Agora ele está lá
permanentemente.
Deixou para trás algumas pedras de lápides, cinco
filhos
– e este relógio.

Por setenta e cinco minutos, o relógio fantasma
alegremente
compete com os modernos relógios digitais da casa.
Como se o tempo fosse realmente cíclico, reversível.
Até que, de repente, o relógio do meu pai
para outra vez. Imóvel. Definitivamente.

O que há para se dizer? Coloco o relógio de volta
na gaveta. Outra pessoa pode decidir isso.

AXIOMA

O falso orgulho
entra em colapso
cedo ou tarde.
Como se a realidade
em sua mais íntima
estrutura fosse governada
pela razão.

Déspotas e impérios
chegam ao fim;
assassinos brutais
e sistemas políticos
violentos
duram por um breve período,
então o regime desmorona
de dentro
para fora.

O nome do ditador
cai
no profundo esquecimento –
mais rápido do que os representantes
da bondade
dos quais o coração se lembra.

Novas personificações
da maldade humana
aparecem –

brutalidade e arrogância
transam alegremente
com nosso desejo
pelo prêmio máximo.

Mas estes
e seus companheiros de viagem
servis
também desaparecerão
quando
o tempo deles chegar.
Acredite nisso.

Invencível
é o tutano
que todas as manhãs
levanta a todos nós
da cama
cada um com sua própria
porção de alegria e esperança
agarrada ao anzol.

ENCORAJAMENTO

Não é um pensamento edificante
que dentro de algumas décadas nós
e toda essa época confusa
com seus presidentes cínicos,
argumentos desgastados,
apresentadores de TV piegas, jornalistas apáticos,
e o regozijante coral capitalomaníaco
sumiremos? Para sempre.
Nós vamos desaparecer.
Eles vão desaparecer.
Eu vou desaparecer.
Você vai desaparecer.
Tudo vai desaparecer.
Hurrah!

EPIGRAMA

Podes passar uma vida inteira
em companhia de palavras
sem que encontres
a adequada.

Tal como um peixe miserável
embrulhado em jornais húngaros.
Por um lado, está morto,
por outro, não entende
húngaro.

*Publicado inicialmente em nosso site anterior, chamado Literatura & Outros Blues, no dia 12/09/2021.

Sobre o autor:

 
Niels Hav nasceu em 1949 na cidade de Lemvig, área rural no oeste da Dinamarca. Estreou na literatura em 1981 com a publicação de um livro de contos e no ano seguinte publicou seu primeiro livro de poesia. Niels já se estabeleceu como uma voz nórdica contemporânea. Autor de contos e poemas publicados em inúmeras revistas e antologias em todo o mundo. Traduzido para o inglês, árabe, espanhol, italiano, turco, alemão, holandês, chinês, sérvio, albanês, entre outros idiomas.

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