Navalhar é preciso: uma entrevista com UBIRATAN COSTA
Navalhar é preciso: uma entrevista com UBIRATAN COSTA

Navalhar é preciso: uma entrevista com UBIRATAN COSTA

Aliedson Lima: Ubiratan Costa. Ubiratan? Dei até um google pra ver se não era um personagem da fase indianista de José de Alencar. Diz o sr. Google que não. O que você tem a dizer sobre este nome?

Ubiratan Costa: Tanta coisa! É muita coisa num nome só. Mas pra não te encher a paciência, digo só essas:

Diz minha mãe que me queria Nícolas, ou Giuliano. Ia ser um nome desses. Mas um dia saiu meu pai comigo no colo, sozinho, e quando voltou, já tinha me registrado, e ainda por cima com o seu mesmo nome, Ubiratan. Minha mãe achou sacanagem, e não é pra menos. Não creio em Deus, mas, vá lá, que Ele às vezes escreve certo por linhas tortas eu também acho. Porque com esse rostinho que tenho, não haveria de ter nome melhor. Puxei bastante pro lado roraimense da família de meu pai, que é de ascendência macuxi. E adoro meu nome.

De umas googladas que dei por aí tantos anos atrás, vi que Ubiratan significa madeira forte e resistente. Nome mais perfeito pra poeta não há, né? Porque o que o que chega da vida é só golpe, pancada. A gente continua poeta de “ruim” que é, de duro que é. É na base da insistência.

José de Alencar… Você foi no faro, hein! Porque minha mãe e minha avó Teresa são Alencar, de gente que veio do Ceará. Vai que eu não tenho assim uma pontinha que seja do sanguinho do José? ahahahah Fico até me sentindo lorde…

A. L.: Tarde Inventada é seu segundo livro, que saiu no ano passado pela Editora Urutau. Pensando nas experiências de leitura que chegaram até você, o que gostaria que os leitores reparassem no livro que até agora não repararam?

U. C.: Olha, sabe que não me chegam notícias da leitura de Tarde inventada? São pouquíssimas. E agradeço muito cada uma, porque só de repararem no meu livro, só de me lerem, eu já estou luxando. Fico besta quando me leem. Mas, de maneira geral, acho que tá todo mundo acanhado de dizer o que acha desse livro. (É tão ruim assim? Ahhahaah) Ou simplesmente ainda não leram. E isso eu entendo, porque a fila é grande. Quem gosta de ler, tá sempre atolado de leituras. Entendo perfeitamente que livro fique pra depois.

Mas pra não dizer que eu não indico nada, eu sinalizo isso aqui: o tal do sabãozinho infantil. Tá lá na página 98. Diz assim:

A água

e o sabãozinho infantil

escorrem no cimento.

Duas poodles se secam

ao vento no quintal. 

É Suzy a branca,

é Fany a bege,

são filha e mãe.

Eu me divirto com esse pedaço. É fofinho. Quase brega. Botei muito açúcar nesse livro. Não repararam? Tá tão azedo assim?

Tarde Inventada

A. L.: Você sabe o que Drummond, Miró e Bandeira tem de parecido com Ubiratan? O olhar de cronista – isso ficou claro em Tarde inventada. Pode não ser o que define um bom poeta, mas certamente esse olhar de cronista está presente em quase tudo que nossa literatura produziu de bom. Por que você acha que a produção contemporânea vem perdendo tanto esse olhar? Ou não vê assim? Vale discordar. Vale até navalhar. Com palavras, é claro.

U. C.: Concordo contigo, viu? É contraditório isso: justamente na era das imagens, do apelo às imagens, é que mais perdemos a capacidade de ver. Me deixa ser bem óbvio? É que não tenho outra resposta: é o Tiktok, o Instagram, é oscambau. Estamos saturados demais de conteúdo. Assim a mente não tem descanso. A exploração da vida pelo capitalismo chegou no seu auge. Não há um pedaço de nós que não esteja invadido, colonizado. Somos sugados 24h por dia. Não temos mais direito nem mesmo ao vazio. Ao tédio. À morgação. À vadiagem. À divagação. Ao silêncio interior. Estamos sempre produzindo, inclusive no lazer. Com os olhos grudados na tela, não há mesmo no que reparar. Queimamos nossas retinas para o mundo com esse excesso de luz azul. Não há sobre o que escrever se olhar não erra, não divaga, não medita, não espera. E é nesse contexto que viceja essa poesiazinha de insight, de flashes, de efeito, que faz sucesso que só nas redes: 3 ou 4 versinhos, linguagem publicitária, e 0 leitura de mundo… Tô fora.

A. L.: Quem acompanha Ubiratan nas redes sabe que uma das maiores referências é Cecília Meireles. No dia 09 do próximo mês completará 60 anos que a poeta nos deixou. Façamos um exercício de refletir sobre o cenário literário de hoje e o de daqui a 60 anos. Destaque nomes de hoje que você enxerga como possíveis referências para o que vem pela frente. Quem fica? Alguém?

U. C.: Pergunta difícil, hein! Mas vou tentar responder. É que tem muita coisa mais ou menos sendo festejada… Muita literatura meia bomba. Parece que andam esquecendo que literatura não é sobre temas. O tchan da literatura é outro. Tá no jeito de dizer, de montar, de fazer a coisa. Só se é literatura por isso. Tema a gente acha em qualquer lugar, assunto todo mundo tem. Mas o feitiço de saber contar, a bruxaria de saber dizer, aí já é outra história. Eu só acho que, por baixo dessa camada de escritores festejados por conta de uma literatura mais ou menos mas super ‘temática’, tem um monte de gente publicando umas bruxarias incríveis.

Agora, sobre quem fica, isso eu realmente não sei. Primeiro que duvido que a humanidade tenha mais 60 anos ahahahah. Pelo menos pra nós, do sul global, vai ficar difícil. Estamos escrevendo para o fogo e as águas. São eles que vão “consumir” nossa literatura.

Mas digamos que mais 60 anos virão pra gente. Pelo andar da carruagem, o que vai ficar é essa literatura meia bomba mesmo. Não acredito nessa de que permanecem as melhores obras. Permanece a obra de quem já tá por cima, de quem já dispõe dos meios de se fazer circular, ou de quem sabe jogar o jogo. Eu gostaria muito de acreditar que todo livro bom vai encontrar um público, que vai encontrar os seus leitores, seja agora ou depois. Mas como tudo na vida não é justo, não é na literatura que as coisas seriam diferentes. Permanece quem pode, e não quem merece.

Eu posso falar simplesmente do que gosto, e do que gostaria que permanecesse. Vou falar aqui só dos poetas, porque é a poesia que anda precisando mais de atenção. A prosa tem gente demais pra defendê-la! E vou falar mais da poesia porque, em termos de literatura contemporânea, é o que mais leio, o que mais acompanho de perto.

Da poesia mais “conhecida”, gosto de Adélia, Micheliny Verunschk, Ana Martins Marques, Tarso de Melo, Ricardo Domeneck, Mar Becker. Agora, do que não está tanto sob a luz, há Conceição Rodrigues, Thiago Medeiros, João Paulo Parisio, Wilton Cardoso, Carlos Machado, Daniel da Rocha Leite, Daniel Francoy, Ângela Vilma, Elizeu Braga… Não conheço todos com a mesma profundidade, mas do que li, gostei, e gostaria que ficasse. Pra quê? Não sei. Pro fogo, pras águas, pra terra. São eles que vão ler nossa literatura.

A. L.: “Literatura meia bomba”? Conceitue.

U. B.: Rapaz, mas você quer me ver no sal, hein! Vou responder, mas cruzando os dedos. Vai que a blitz dos “necessários” me pega… Não vão me chamar pra mais pra nenhum sarau. Mas, enfim, literatura meia bomba é aquela que abandona todo gosto pelo arranjo, pela construção, e quer ganhar pela urgência de seu conteúdo, de sua mensagem. É a tal daquela que ensina, que conscientiza, literatura de boas intenções, feita com o propósito de orientar. É como diz o adágio: de boas intenções o inferno está cheio. Nessas horas eu tô com Antonio Candido, que disse que literatura não corrompe, nem edifica, mas traz dentro de si, livremente, o bem e o mal. É como tá dito no seu “Direito à literatura”: a validade da mensagem de uma obra depende da forma que lhe dá existência. Interpretando, e muito livremente, é isso: o conteúdo só tem poder e impacto se a construção não é capenga. A literatura meia bomba é a do conteúdo de ouro, numa estrutura de plástico.

A. L.: Aproveita e deixa um recado para nossos possíveis leitores de 60 anos depois de hoje.

U. C.: Pode ser um beijo? Ahaahahh Eu mando um beijo, um abraço, e um muito obrigado por acreditar na literatura. Entre outras coisas, não somos “bicho” por isso, porque temos a capacidade de inventar o que a gente é. A literatura não é nada mais que isso, um jeito de inventar a humanidade que a gente quer ser. Do lado de cá, vejo que o refinamento tecnológico só está trazendo o nosso lado mais brutal, o nosso lado mais bicho. Se daqui a 60 anos ainda há leitores de literatura, é porque a humanidade ainda está dando certo. Viva você, leitor! 

A. L.: Continuando na brincadeira dos 60, quero que emule um senhor de 60 anos e deixe aqui dicas pra quem está começando a publicar poesia agora.

U. C.: Dicas eu não sei dar não, mas bronca com certeza! Vou ser um velho bem reclamão e ranheta, se continuo nesse caminho. Segue então minha brincadeira:

“Publica agora não, fí, guarda mais um pouquinho. Vê se cria vergonha, e aprende a ser leitor primeiro. Faça pelos outros o que gostaria que fizessem por você: leia o trabalho alheio, mas com vontade, com curiosidade, com interesse, com tesão. Vai ler o velho, o novo e o novíssimo. Mas se mesmo assim quiser publicar AGORA, fique sabendo: é por sua conta e risco, porque ninguém tá com fome da tua poesia. Pode publicar agora, amanhã, tanto faz, porque ninguém tá precisando dela. Aprende mesmo é a amar a coisa feita, e a amar fazer a coisa, porque é esse o único benefício: o de ter dado à luz, e ter gostado muito disso. É que o que vem depois é o nada. Vão passar longe da tua criança, da tua cria, da tua criação. Vão passar pro outro lado da rua quando virem teu menino. Ninguém liga se um poema nasceu. Ninguém liga pro livro que se publicou. Quem fez, fez porque quis. Mas eu quero que você faça, enfim. Nem tudo é tristeza. Quero que faça porque toda poesia é bem-vinda, mesmo que não tenha leitores, pois toda poesia é o milagre de ter sido escrita, de ter rompido a casca de indiferença do mundo e saído à luz. O resto é o resto, e você vai aprender a lidar com isso.”

A. L.: “Vê se cria vergonha, e aprende a ser leitor primeiro.” Isso daqui não é bem uma pergunta. É mais um pedido: gostaria que repetisse por três vezes como resposta.

U. C.: Gostei. Lembrando aqui do Manoel de Barros, e pervertendo uns seus versinhos, o lance mesmo é repetir, repetir, até que ELE, o nosso poeta noviço, fique diferente. Mas posso ir trocando as fontes? Vai que assim toca mais o coração do noviço…

Vê se cria vergonha, e aprende a ser leitor primeiro.

Vê se cria vergonha, e aprende a ser leitor primeiro.

VÊ SE CRIA VERGONHA, E APRENDE A SER LEITOR PRIMEIRO.

A. L.: Vi que se manifestou dia desses sobre o que acontece em Gaza. O que é mais difícil: inventar uma tarde ou inventar uma forma de alcançarmos um cessar-fogo ali?

U. C.: Olha, acho que, do jeito que tá, o que rola mais não é nem o cessar-fogo, mas uma forma de cessar a humanidade mesmo. Se estamos aqui pra isso, pra apagar um povo e o rastro desse povo sobre a terra, ou pra assistirmos em silêncio Israel fazer isso numa boa, na cara dura, pra todo mundo ver, ao vivo e a cores… Me desculpa, mas o que precisa cessar é a humanidade. Demos muito errado. Não quero estar aqui pra ver o resto. Humildemente peço que “parem o mundo que eu quero descer”. Não dá.

A. L.: “Se daqui a 60 anos ainda há leitores de literatura, é porque a humanidade ainda está dando certo”, “Demos muito errado”. Decida, meu caro poeta, primo de José de Alencar.

U. C.: Puxa vida, e agora? Fui pego de calças curtas. Não sei me decidir… A humanidade nos dá Netanyahy, Malafaia, mas também dá Jean Genet, Cecília. Só mesmo o Bandeira pra apaziguar a contradição. Me justificarei com suas palavras e, é claro, escangalhando o seu poema. Espero não fazer tanta vergonha:

A [humanidade] assim nos afeiçoa,
Prende. Antes fosse toda fel!
Que ao se mostrar às vezes boa,
Ela requinta em ser cruel…


Sobre o entrevistado:

Ubiratan Costa

Ubiratan Costa nasceu em Goiânia em 1990. É formado em Composição Musical pela Universidade Federal de Goiás e graduando em letras pela mesma instituição. É compositor de música de concerto e por meio desta arte dá vida a textos próprios e de poetas queridos, como Cecília, Bandeira e Kaváfis, em canções para formações instrumentais e vocais variadas. É integrante do grupo Música Íntima, que reúne compositores goianos de música contemporânea. Junto ao Música Íntima lançou, em 2019, o álbum “Jackhes, meus amores”, e em 2020 o EP “Reverdecente”. Estreou na literatura com o livro de poemas As Notações do Azul (ed. do autor), publicado em 2021. Tarde inventada, seu segundo livro, foi lançado pela Editora Urutau em 2023, durante a 21° edição da Flip, na cidade de Paraty (RJ).

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