As navalhadas do dia ficam por conta de Gisela Maria Bester. Dos 6 poemas que seguem, o primeiro é inédito e os demais saíram pela Editora Mondru: o terceiro e quarto integram a antologia A Mulher Não Sou Eu (Mondru, 2023, Org. Julia Pantin – revisitados), os três últimos saíram no livro Pinte-me de Azul! (Mondru, 2023).

Imutável
Oh, antrópico ser, que tudo queima
Esfarela a vida em triste tempestade gris
Chove o negror que beber não se pode e quis
Sufocar os sonhos com a ameaça da tua feiura
Teima em cegar nossas vistas com a fumaça da morte
Tão forte tua imensa e insana ganância
Toma agora o teu veneno no copo de cristal
Outrora d´água cristalina
Hoje gigantesca gota de lamúria inútil, na
Incessante ânsia de agruras

[Dois poemas de Gisela Maria Bester, integrantes da antologia A Mulher Não Sou Eu (Mondru, 2023, Org. Julia Pantin – revisitados)]
O peso de ser mulher
O peso do mundo
o peso da neurodivergência
a mulher
leva
Com poemas de berço
tornar-se cheia
terminar-se de fazer
costurando-se a si mesma
começando pelas veias
E ocupar espaços
na vida
na página
na cadeira
na mancha da toalha de mesa
e nas pernas de menstruação…
Na calentura do sopro
reacender
o que já longe sumiu em
memoricídios
Entre o peso da mentira
e a expansão da verdade
a mulher
leve

Astrolábio
Um astro no lábio
Te traz e te leva
Rachadura
Saliva
Silêncio e estiva
Abertura
Suspiro e voz
Baba
Pressão e evaporação
Um astro no lábio
Te leva
Um fruto maduro
Desnudo no escuro
Uma corredeira vermelha
E a fuga veloz das palavras
Um astro no lábio
Te traz
A censura de Eva
Um vício de contágio
Uma ladainha contra o patriarcado
E um buraco de saudade
Um astro no lábio
é guia de mulher
No lábio do astro
Cabe um poema
Um astro no lábio
Astrolábio

[Três poemas de Gisela Maria Bester que compõem o seu livro autoral Pinte-me de Azul! (Mondru, 2023)]
Mulher Anfíbia
Entre arco e lira
com arco e flecha
a sagitária delira.
Entre.
Espreita um fluxo
peita um refluxo
desde que sua matéria primordial
– a bile –
veio como definitiva
no depois
do acaso objetivo.
Pé na vida
Deixar de molho
Enxaguar
Sem parar
E ainda não ser suficiente
Para tantos rituais
Perfumando a sala
Com seus cadáveres esquisitos…
– Não, obrigada,
sou alérgica a jasmins e goiabas.
E eis que então,
já quase desidratada,
mobiliou a paixão
com olhos arcaicos
língua fervente
e adornos ígneos.
Em troca pediu
após o banho
somente
um pouco de casa
e uma ampola de coração.
E que lhe falasse
em perspectivas
sem falácias
sangrando a linguagem
que foi criada
para não a traduzir.
E então ela falou eu já chego!
Mas, enquanto isso,
assopra as feridas
ama muito
perdoa fácil
cuida como fera.
E espera.

Provador
Prova a dor
fiel provoca(dor).
Nenhum espelho
por mais
que afine
e alongue
tua silhueta
consegue
por nenhuma
ilusão de ótica
nenhum truque
tirar-te
a dor.
Nem uma roupa
por mais
que te luza
elegância
brilho
transparência
luxo
alegres cores
tapa
o tapa que levaste ontem.
Vendedor
de vestes
espelho
não desveste
o bolor
que n´alma vai
nem acalma
a sede
e a fome
da gulosa e aflita
sanguessuga
vista
quando te
desnudas
no prova(dor).

Toca
Da sua toca
toca o mundo
toca a vida
toca a toca
toca a pele
toca a língua
do porco tosco
do louco moço
do fundo poço
da nua choça
da amarga lua
daquela íngua
ainda sua
toda bossa
toca
Sobre a autora:

Gisela Maria Bester é escritora gaúcha nascida em 1968, radicada em Curitiba e em Palmas/TO. Autora das letras jurídicas e literárias (poeta livre, haicaísta, cronista e contista). Possui Mestrado em feminismos, sufragismo e ações afirmativas, Doutorado em ditaduras brancas e Pós-Doutorado em sustentabilidades. Seu livro Pinte-me de Azul! (Mondru) é finalista no Prêmio Literário da Cidade de Curitiba 2024. Vencedora do 38.º Prêmio Yoshio Takemoto de Literatura 2024 (Haicai). Teve conto de humor destaque e crônica finalista nos Prêmios Off Flip de Literatura 2023. Cuida de plantas, bichos, gentes, águas, e do planeta, que sempre aparecem em seus textos. @giselabesterescritora