ROSANA VINGUENBAH – Medo de tempestades
ROSANA VINGUENBAH – Medo de tempestades

ROSANA VINGUENBAH – Medo de tempestades

Tenho medo de tempestades. Quando o céu começa a escurecer indicando chuva, o medo e a ansiedade começam a me aterrorizar.

Esse pavor surgiu quando eu tinha onze anos e ainda morava com a minha família na zona rural de Barrocos, uma pequena cidade do interior que vivia da lida no campo. Nossa casa ficava em um terreno que painho herdou de meu avô. Eram essas terras que produziam parte do nosso sustento, onde mainha plantava e criava galinhas. Digo parte do sustento porque painho sempre trabalhou na vizinhança para trazer um minguado salário pra casa, por pura necessidade e contra o seu orgulho de homem provedor.

Sustentar uma família com cinco filhos não era fácil, mas era uma questão de honra que ele cumpria com rigor. Quando meus dois irmãos mais velhos se tornaram uns moleques mais graúdos, painho já tratou de arranjar ocupação para eles.

“Estudar não enche barriga”, ele dizia pra mainha, que tinha pena dos filhos, mas sabia que o sustento da família dependia do trabalho.

Nossa casa era muito simples. Uma construção de pau a pique que painho levantou com a matéria-prima daquele chão. A mesma terra que encardia os nossos pés e que flutuava suspensa pelo vento era a terra que segurava as paredes que nos protegiam e nos davam um teto. O fogão de mainha também era feito daquele solo. A cada chama acesa, se tornava mais petrificado e cumpria a função de cozinhar os alimentos para as nossas bocas famintas.

A tarefa de cuidar da casa e dos irmãos mais novos foi destinada a mim, muito cedo. Mainha golpeava a sua enxada o dia todo. Carpia o mato que invadia seus cultivos. Feijão rasteiro e de corda, mandioca, abóboras e melancias se misturavam à sua figura. Ela não esmorecia diante do sol escaldante, do vento ou da chuva, que apesar de escassa molhava a terra em algumas ocasiões. Enquanto ela lavrava a terra, eu varria o chão da casa, estendia as roupas torcidas por ela na noite anterior e alimentava meus irmãos.

Quanto ao meu pavor de tempestades, posso afirmar que começou no dia em que uma chuva nunca antes vista invadiu a nossa região.

O céu se tornou nublado rapidamente e um vento forte balançava as árvores e espalhava poeira por toda parte. Trovões estremeciam o chão quando mainha chegou afobada em casa. Corremos para recolher uma remessa de feijão espalhada no terreiro para secar. Tivemos que apertar o passo para que os grossos pingos de chuva, não molhassem as vagens e estragassem o nosso alimento. Meus irmãos mais novos recolheram uma galinha com os seus pintinhos recém-nascidos e colocaram dentro do paiol, na mesma hora em que os cachorros assustados também procuravam abrigo.

Terminada a tarefa de proteger os alimentos e os animais, entramos em casa com a roupa ensopada. Era tanta água despejada do céu que a sensação era de que o telhado de palha iria cair sobre nossas cabeças. Os raios incessantes iluminavam as frestas de nossa casa e reproduziam estrondos que pareciam atingir as entranhas da terra. O medo de que fôssemos atingidos nos deixava em pânico.

Eu e meus irmãos nos escondemos sob a pequena mesa de madeira que ficava na cozinha. Eles choravam envolvidos nos meus braços, enquanto mainha rezava e pronunciava o nome de Santa Bárbara, na tentativa de que o dilúvio se tornasse mais brando. O vento e a força das águas derrubavam objetos no quintal e sacudiam as árvores, como se elas fossem ser arrancadas pelas raízes. O barulho dos galhos se quebrando e atingindo o chão junto com a aguaceira que rugia ao redor da casa dava a sensação de que seriamos tragados pela chuva.

Depois de um longo período de aflição, em que ficamos vulneráveis à força da natureza, a chuva começou a diminuir, os raios e os trovões se distanciaram e o vento desapareceu. Ainda ficamos abrigados dentro de casa por um tempo, tentando retomar a serenidade depois de tanta agonia.

A porta da sala foi aberta por mainha. Com os olhos marejados observou o estrago e a sujeira espalhada por nossa propriedade. Saí do abrigo com meus irmãos e segui mainha pelo quintal. Parecia um cenário devastado por um furacão.

Eu e meus irmãos fomos limpar o quintal e recolher os objetos arremessados pelo vento. Os meninos, preocupados, correram para verificar se os animais estavam salvos.

Mainha observava os seus cultivos elaborando mentalmente um inventário dos prejuízos causados pela chuva. Ela lamentava em voz alta e pedia a Deus que tivesse compaixão de nossa família, que vivia com tão pouco.

Conforme as horas iam passando, mainha ficava mais preocupada, pois não tivemos notícias de painho e meus irmãos mais velhos. Eles haviam saído de casa muito cedo para trabalhar no reparo das cercas de uma fazenda da região.

A preocupação redobrou no momento em que avistamos um empregado da fazenda chegando a cavalo pela curva da estrada. Mainha seguiu ao encontro do capataz com a sensação de que más notícias seriam entregues. Deixei os meninos no quintal e fui atrás de mainha com o coração aos pulos. Ouvi o homem falar sobre o acidente com painho e meus irmãos mais velhos.

Voltamos para casa e, depois de vê-la atônita e desnorteada, sugeri que fôssemos até a cidade comprovar o estado de saúde deles. Mainha procurava os documentos para levar ao hospital, enquanto eu colocava uma roupa melhor nas crianças. Caminhamos por mais de uma hora em meio ao silêncio de mainha e o ranger dos nossos passos.

Meus irmãos mais velhos haviam sofrido algumas queimaduras pelo corpo, e já haviam sido medicados. Eles ficariam em observação por vinte e quatro horas. Já painho apresentava um quadro mais grave. No momento em que o raio rompeu o céu, ele estava mais próximo da cerca de arame e foi atingido pela descarga elétrica ficando inconsciente.

O médico conversou com mainha sobre o estado de saúde de meu pai e disse várias coisas que ela não entendeu. Ela sabia que painho tinha sofrido uma parada cardíaca e o socorro rápido havia salvado a sua vida. Como o seu estado de saúde era delicado, ele deveria ficar no hospital até seu reestabelecimento completo.

A verdade, no entanto, é que painho nunca mais recuperou totalmente a sua saúde, e um problema renal causado pela descarga elétrica o acompanhou até a sua morte, ainda muito jovem. Enquanto ele vivia adoentado, com as suas idas e vindas entre nossa casa e o hospital, minha vida e dos meus irmãos se tornou mais dura e com maiores responsabilidades.

E continuou assim até que Deus também levou mainha depois de muitos anos de trabalho e sofrimento. Restavam somente eu e o mais novo ao lado dela. Aquela vida miserável e restrita de Barrocos foi ficando pequena para meus irmãos, que um a um partiu na tentativa de conseguir uma vida digna.

Após a partida de mainha, essa também foi a minha escolha junto ao meu irmão mais novo. Resolvemos seguir para a cidade grande na esperança de que a vida fosse melhor.

Hoje vivo nessa cidade turbulenta, onde as pessoas andam com um passo acelerado e solitário como se o tempo consumisse todos os seus momentos do dia. As coisas não mudaram muito, do tempo em que vivia em Barrocos. O trabalho e as responsabilidades aumentaram. Não é fácil ser pobre na cidade grande. Foi uma luta para construir o meu barraco.

E agora estou com medo. Nuvens pesadas estão se formando. Raios e trovões me assustam com a luminosidade estrondosa e o meu pensamento não me dá trégua, pois o morro e as encostas com milhares de moradias podem desmoronar a qualquer momento levando o meu barraco e minhas esperanças.

Tenho medo de tempestades.

*Publicado inicialmente em nosso site anterior, chamado Literatura & Outros Blues, no dia 25/07/2021.

Sobre a autora:

Rosana Vinguenbah nasceu em São Paulo e é radicada em Minas Gerais desde a infância. É autora do romance Sopa de Pedras (Penalux, 2018) e do livro de contos Relatos Insignificantes de Vidas Anônimas (Caos e Letras, 2021). Foi finalista e participa da Coletânea de contos Retratos da Vida em Quarentena (Dublinense & Editora Elefante, 2020). É bióloga, funcionária pública e produtora de conteúdo de literatura no Instagram @rosana_vinguenbah, com ênfase para Literatura Nacional Contemporânea.

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