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um tempo atrás um homem alvo calvo salvo me disse, ou melhor, quis me dizer, nessa prática comum da elipse sarcástica achando que mulher não compreende função retórica tampouco histórica, que deveria, trocando em miúdos, desistir por orgulho. orgulho, achei tanta graça. se não embalo o orgulho, quis lhe dizer [não disse (escrevo)], não chego a lugar algum. porque bem antes de abraçar esse cobertor tão quente, orgulho, é prudente admitir que obstáculo muitas vezes não se passa por cima. muitas vezes se carrega. vai-se levando no ombro, na guarida, no ventre, no sintoma. reconheço muito bem o meu gênero a minha cor a minha classe a minha geografia a minha história o meu sotaque a minha envergadura. vou carregando todo o engasgo, não engulo. se digo que o queixo vai alto, minto. pesa. queda. carcome. levo. enlevo comigo cada crueldade que não pude ignorar. cada ato fálico. cada passo. um avesso de orgulho. poderia chamar coragem, se concordo que sou otimista. não concordo com nada. sigo. no frio. molhada. sarjeta. assombrada. persisto. não é só a mim que escolhas atravessam a casta. caminho. esburacada de amor-próprio. e se me aparece um atalho, desconfio. é o mínimo. estrada que faz ser mulher. sei que ao meu lado atrás e à frente vão foram irão várias. não espero o mundo ser melhor. construímos. utopias. destruídas ou não. não paramos pra deitar.
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vou contar essa história. não porque catarse inspiração estética ética ficção blá-blá. porque preciso. e de precisar não saímos ilesos.
era uma vez um vírus, do tipo que muitos ficcionistas, cineastas, artistas de um modo geral ao menos de alguma forma já haviam representado ou fantasiado. enfim, sabe-se que se enveredou pelo mundo todo. todo. muitos governantes negaram, muitos governantes se arrependeram, muitos governantes não, ou ainda não. mas com certeza um dos piores deles está aqui. neste país tropical continental uma urna fantasmagórica agora neste exato instante. onze e onze. e ainda não chegamos a maio. mas essa história aí todo o mundo vai saber.
quero contar outra.
era uma vez um vírus. estava o homem, idoso, no hospital, acompanhando sua companheira que estava doente. eram do grupo de risco. grupo de risco é a expressão comumente usada para caracterizar seres humanos que se encaixam em determinada estatística, posto que todos em alguma estão, conforme já determinado desde a caça às bruxas, no mínimo. o idoso estava com a idosa. no hospital. e também é importante que se mencione este último fato, datando-o do momento, pouco anterior a este com que nos falamos (eu falo, digo), quando ainda era possível entrar no hospital e ter vaga. digo especialmente o idoso não só pela estatística já contextualizada. que havia outra. há sempre outras, na verdade, por vezes concomitantemente.

era uma vez um vírus. estavam um homem idoso e uma mulher idosa no hospital quando uma enfermeira descobre que havia desaparecido o seu celular. celular é o termo que designa um aparelho do tamanho normalmente de uma mão que é usado para falar e ouvir e ler e escrever tudo o que se quiser porque tem o poder de atravessar espaço e tempo mas não foi exatamente por isso que foi sentida sua falta, dado que há várias espécimes de aparelhos dessa envergadura, afinal um aparelho pode ser igual a milhares na mesma proporção de veracidade em que um ser humano não é igual a nenhum outro. embora haja estatísticas que digam o contrário e mesmo que uns mais iguais que outros. era um tempo de paradoxos.
era uma vez um vírus. um homem idoso estava no hospital acompanhando a idosa que estava internada. uma enfermeira estava sem seu aparelho telefônico. evidentemente que isso não tem uma relação intrínseca com a pandemia do vírus, é que realmente não estou sabendo como correlacionar da melhor forma as ações. há sim necessidade de muitos aparelhos respiratórios, mas definitivamente o telefônico não era um deles. claro, claro que em um momento (previsível, sim, obviamente, já) como este um aparelho respiratório seria, não, é muito, mas muito mais útil que. sim, ficamos todos, hora ou outra, fadados nós mesmos à obsolescência programada. em manaus já não há urnas. não, não é tempo ainda de eleições. por favor, me ajude.
era uma vez um vírus. uma idosa, um idoso, uma enfermeira e um celular. perdido. todos estamos perdidos, na verdade. uns mais que outros. ou uns antes que outros, mas estamos todos. agora está um pouco turvo. não consigo enxergar de todo a linha. muita coisa se passa. anteontem, ou na semana passada, não sei ao certo, houve um pronunciamento da ré-pública em que o ocupante do cargo também estava todo ele desgovernado que até este momento entre juiz, aborto, piscina, condomínio, marielle, família, polícia, milícia, não há rima ou humor que organize a quadrilha, não se sabe. na verdade mesmo? mesmo? todo mundo já sabe. inclusive por que não há cadeia. estou a ponto de desejar sabe o quê? que morra na fogueira em praça pública. não estou já com nenhum tipo de ordenamento mental. é tudo um caos: ética, sistema de saúde, narração.
era uma vez um vírus. preciso realmente chegar ao fim desta história. dois idosos. todos precisamos embora faltem-nos para-brisas e outros equipamentos de proteção individual. especialmente coletiva. aquela que o acompanhou sabe-se lá como, muitos questionam, por trinta e cinco anos, diante da acusação. sim, houve uma acusação, achei que já tivesse mencionado. há milhares de acusações e crimes de responsabilidade, sim, eu sei, todos sabem, mas é que essa história, veja, pode ser que essa história seja esquecida embaixo dos escombros quando a história com sua roda agonizante e tivermos que escolher o que ensinar para os filhos dos idosos que sobrev.
era uma vez um vírus. o idoso foi acusado. o idoso estava acompanhando sua companheira que estava tentando se recuperar no hospital. a enfermeira perguntou [inicialmente, pode até ser que educadamente, quem de nós pode garantir, tantas vezes cometemos equívocos, afinal somos seres humanos e estamos todos todos todos (na verdade, depende de alguns fatores, neste caso especialmente um, já trato)]. mas o idoso disse que não viu o celular. houve agressão. em algum momento em que não tenho capacidade de convencê-los verossimilhantemente, houve agressões. reviraram suas fraldas. escutem bem. reviraram suas fraldas. a companheira do idoso procurou defender, digo argumentar, afinal de contas ela uma idosa em um hospital no meio de uma pandemia cujo único sentido pode ser em poucos dias a vida para cada um de nós a qualquer momento mas o aparelho celular. não estou certa agora a sua marca. marca é o termo utilizado para valorar determinado aparelho, não só telefônico, respiratório, estatal, não sei bem mais, mas pode dar a ele um valor que faça com que seja mais importante que outro. é muito difícil contar essa história, mas por mais que seja quase impossível, não sei descrever a minha angústia como poderia imaginar o que sentiu a companheira do idoso que estava na cama enquanto um vírus que tem matado, sim, o vírus tem matado, ontem mesmo chegando à marca (essa é outra marca, não tenho condições de esclarecer agora) de quinhentas mortes por dia. morte é o termo comumente usado para identificar seres humanos que sucumbiram, não, não é esse o termo na verdade, porque sucumbir pressuporia alguma forma de entrega, mas o idoso não podia entregar o celular porque não havia sido ele, enquanto isso depois de agressões, a sua companheira, que de ter acompanhado a parte do idoso que era humana por trinta e cinco anos, ora que bobagem, me perdoem, não há parte que não seja humana no humano, digo, não sei exatamente defender essa ou qualquer outra hipótese, afinal a enfermeira garantiu agrediu acusou. houve gritos. nessa hora imagino que o coração. coração é o termo usado normalmente para referir um órgão do corpo humano que bombeia para todo o corpo e também tem sido ou era usado como metáfora para a parte mais íntima de um ser. a parte mais íntima da companheira do idoso portador do vírus que buscava ser curado no país da escravidão quando a enfermeira perdeu o celular. não, não. estou confundindo todas as coisas. o idoso não estava com o vírus da pandemia não estava com o celular da enfermeira não estava com a dignidade garantida a todos nós quando foi expulso jogado pra fora do hospital e não pôde dizer ouvir tocar na mão pela última vez da companheira cujo coração.
era uma vez um vírus. o hospital disse que foi desnutrição grave. o celular estava na sala de reuniões. o hospital que fica no sul do país não pediu desculpas, levou um lanche. com sessenta e dois anos o idoso diz pra reportagem que não está conseguindo voltar ainda a trabalhar e que não, desculpe, ele diz, não sabe se já tem direito a aposentadoria. aposentadoria era um termo usado.
e me nego a descrever a sua cor e a sua classe ou a sequer supor ou permitir que você já não o saiba.

Dheyne de Souza é goiana. Publicou poemas em “lâminas” (Martelo Casa Editorial, 2020) e na plaquete “era uma promessa; era pra cuidar; ela engravidou; ela se perdeu;” (lola, 2022). Faz parte do coletivo de mulheres poetas Bidê Coletivo. Tem um podcast de leitura de literaturas, chamado “escuta,” escuta, | Podcast on Spotify. E vão (Cachalote, 2025) é seu primeiro romance.