por Soraya Viana,
professora, tradutora e colunista da Revista Navalhista
“Violento” e “viciante” são os adjetivos que vêm à mente para descrever o romance Kaapora (Nauta, 2024). Nele, o autor paraense Leandro Machado aborda um tema onipresente na cultura brasileira: a criminalidade visível e suas causas menos aparentes.
O início da trama acompanha Valdeci, vulgo Catita. Aos 16 anos, ele é membro de uma quadrilha chefiada por seu tio, Adailton / Mucuim. A especialidade do grupo é a invasão de embarcações e residências, principalmente de homens idosos. O objetivo é captar fundos para a compra de armamento pesado, a ser usado futuramente em um assalto de maior porte. A violência do bando ‒ apelidado de “Ratos d’água” ‒ também inclui estupros e assassinatos.
No decorrer da leitura, conhecemos a vida pregressa da família de Valdeci, em capítulos que recuam cada vez mais no tempo. Neles, um contexto amplo se delineia e revela que a cadeia de atrocidades em que os protagonistas se inserem serve a interesses bem maiores do que os das pequenas quadrilhas. A história aponta que, mesmo na eventualidade de um dos membros do alto escalão do crime ser capturado, não é “(…) nada que o poder do sobrenome não pudesse aplacar” (pg. 89).
As paisagens na mata, seus cursos d’água, a fauna e a flora da região de Bagre, na Ilha de Marajó, contrapõem-se às ações dos personagens. Assim, destrói-se qualquer romantização idílica que o cenário possa provocar no imaginário do leitor não familiarizado com o local. Kaapora mostra que, se em algum momento houve tranquilidade longe dos centros urbanos, o quadro atual é outro.
O ritmo diegético é construído por diálogos verossímeis e frases breves, porém eloquentes: “(…) pagou, colocou a digital no recibo e veio de carona no barco do seu Câmara” (p. 92). As cenas frenéticas e de caráter realista resultam num efeito similar ao de obras como o filme Noites alienígenas (2022) e a série Cangaço novo (2023).
Destacam-se ainda outros dois elementos. O primeiro é o uso de nomes de animais na alcunha da gangue e de alguns personagens. Além disso, o narrador, com frequência, refere-se às vítimas de modo indireto: “As redes no primeiro piso estavam todas quietas, até que uma mulher saiu do banheiro com uma criança de colo” (p. 51). Esses recursos pintam um retrato da animalização e objetificação do ser humano.
Eficaz no uso dessas e de outras ferramentas narrativas, o autor elucida a dinâmica dos esquemas de corrupção brasileiros de maneira inteligente, sem didatismo ou panfletarismo.

Segundo a definição do historiador Daniel Neves Silva, a entidade mitológica Tupi associada às matas e conhecida como Caipora (Ka’a porã, na língua originária) atua “contra os caçadores que matam mais animais do que podem comer”. Na lenda, ao serem perseguidos pela Caipora, eles a consideram uma fonte de má sorte. Dessa forma, a figura e o nome da criatura são associados ao infortúnio.
O romance de Leandro Machado concebe pessoas que, dentro e fora da ficção, retribuem o “azar” impingido a elas por seus predadores. Agindo assim, quem sabe, elas talvez conquistem a liberdade e uma chance de ascender à categoria de mitos…
Fiel à realidade brutal das desigualdades brasileiras, Kaapora chega pronto a ocupar um lugar ao lado da obra de grandes nomes da literatura moderna, como Rubem Fonseca e Patrícia Melo.
Leandro Machado é contista e poeta publicado em revistas literárias (USP, UFPA e UFRN). Kaapora é seu primeiro romance.

Leandro Machado é um autor marajoara da cidade de Breves, no Pará. É formado em Letras pela UFPA – CAMPUS MARAJÓ. Possui trabalhos literários publicados em revistas da USP, UFPA, UFRN, além de participações em antologias. Suas influências de escrita perpassam por diversos signos, como filosofia, cinema, heavy metal e literatura paraense.