por Gustavo Freixeda,
escritor e colunista da Revista Navalhista
Criar uma personagem teatral e extravagante exige cuidado, pois isso poderia facilmente cair na caricatura. Explorar com franqueza temas como decadência, solidão, adoecimento e memória, sem suavizar o peso que carregam nem tratá-los como martírio indevido, também não é tarefa simples. Madame Lua atravessa bem esses terrenos espinhosos e aposta suas fichas em uma personagem cheia de brilhos e sombras, com a convicção de que ela é capaz de carregar um romance inteiro. E, de fato, ela carrega.
Madame Lua, publicado pela editora M.inimalismos, é uma espécie de fábula contemporânea sobre o preço da arte e da fama, contada com um pé na poesia e outro na rudeza do cotidiano. Lua, a protagonista, é uma diva queer exuberante, cultuada como estrela da música e marcada por uma personalidade difícil. E, sendo assim “difícil”, ela é profundamente humana. O livro vai da consagração ao ostracismo, do palco lotado à poltrona mofada de uma casa desorganizada, passando por sua relação ambígua com Joana, sua produtora e única amiga verdadeira, e pelo reencontro com seu passado mal resolvido, tanto familiar quanto emocional.
A história se estrutura como um lento desdobrar de sua queda: começa nos bastidores de um grande show, com todo o aparato e os caprichos de Lua, e avança aos poucos para o abandono e a fragilidade. Ao longo do caminho, não apenas as excentricidades da estrela são apresentadas, mas, sobretudo, as dores que sustentam sua armadura. Um dos méritos de Madame Lua está justamente na forma como aborda o envelhecimento e a perda, com uma franqueza que por vezes beira o cruel, mas que nunca dispensa o afeto. A dor de uma estrela doente, esquecida pelo público e engasgada em sua própria imagem, é narrada com boa intensidade emocional e linguagem visual, sem perder o humor amargo que a atravessa e sem esquecer que voar muito perto do sol é uma das coisas mais humanas de se fazer.
O estilo mescla uma prosa ágil e coloquial com momentos líricos, marcados pelas letras das músicas de Lua, que surgem como suspiros bem-vindos entre os parágrafos. Nesses momentos, o livro revela sua poesia de forma orgânica. E não são apenas, em si, momentos de mensagens-chave. Eles conseguem fortalecer outras passagens que carregam verve poética, encontrada não somente nas letras das músicas compostas por Lua, mas também nos silêncios, nos delírios, nas memórias que invadem a noite de maneira brutal.
Há uma teatralidade na construção dos capítulos que funciona bem com o espírito da personagem. Em certos momentos, a estrutura do livro lembra a de uma peça teatral: personagens que entram e saem como em cena, monólogos diante do espelho e as cenas no hospital que mais se parecem com coxias de um último ato. E não por acaso: Lua é uma artista até nos momentos mais baixos. A sós, ainda é artista, pois, no fim das contas, ela não precisa do público para sê-lo. Cada desabafo, cada recomeço, cada colapso parece seguir a lógica de uma performance, talvez porque ela nunca aprendeu a ser outra coisa senão espetáculo.

Ainda assim, o livro não se fecha em uma só voz. Temos Oorun e Tiê, duas crianças musicistas de um orfanato que tocam nas ruas por algumas moedas e por puro prazer, são o principal contraponto para mostrar à história mais camadas, construindo um mosaico que remonta ao passado e vislumbra o futuro. Kairos não se contentou em mostrar a estrela, quis mostrar também o que resta dela depois que o brilho se apaga.
É a partir da voz de Oorun que a música de Lua ecoa novamente no mundo, numa espécie de renascimento simbólico. Ele e Tiê representam aquilo que Lua perdeu e, ao mesmo tempo, aquilo que talvez ela nunca tenha deixado de ser. Os dois jovens são fagulhas de continuidade, herdeiros de uma força criativa que se recusa a morrer. E quando ela decide que quer “renascer como uma Lua nova”, não é difícil imaginar que essa nova Lua pode muito bem já ter nascido, nas vozes que a cantam com tanta reverência e frescor.
Se algumas metáforas podem soar forçadas e certas reviravoltas podem parecer dramáticas demais, faz parte do microcosmos que o livro criou para si. As escolhas combinam com a própria natureza da personagem, que vive tudo em excesso. Ela não foi feita para ser medida com régua, ela é exagerada, intensa, falha, arrogante, amorosa e trágica. O melodrama, então, não poderia deixar de estar presente. E o livro, ao acompanhá-la de perto, vai no ritmo do seu diapasão.
Madame Lua não tenta ser grandioso, mas comove por sua entrega autêntica. E isso já diz muito, quer dizer que tem alma. Como todo livro de estreia que se preze, há nele uma urgência de se fazer ouvir. Essa urgência se transforma, com o tempo, em maturidade narrativa. Quando Lua decide fazer um último show como seu grand finale, fica a mensagem também do próprio autor: ele quer que esse seja o seu tour de force.
Um gesto de despedida para a personagem; um gesto de nascimento para Felix Kairos.
Que siga ouvindo a rouquidão de sua própria voz.

Entre o Niilismo e a Anarquia, Félix Kairos é um constructo de escritas. Nasceu aos dezoito, ainda cursando Letras pela UFMG, e então se instaurou o caos. Toda a sua dor foi para a construção de uma estética artística extensa. Com publicações acadêmicas e literárias, Félix tenta buscar rupturas narrativas ou limites, que é onde nasce Kairós. Publicou Carnal (2022), O único e eterno rei Momo (2023), O lírio e a Lua (2024), Madame Lua (2025) e Poeira de Estrelas (2025). Mestrando de literatura, o autor busca ideologias que compõem um corpo político, de onde surgiram inúmeros personagens pendulares, entre o profano e o irrefreado – como Madame Lua. Alimentado pela cultura pop e outras artes, Félix Kairos constrói a passos largos um universo grande e caótico para construir um conjunto de corpos sem órgãos, de monstros, crianças e outros vilões inconformados.