Uma confusão do avesso e de trás para frente: pontuar a dor, desenhar a cura [resenha]
Uma confusão do avesso e de trás para frente: pontuar a dor, desenhar a cura [resenha]

Uma confusão do avesso e de trás para frente: pontuar a dor, desenhar a cura [resenha]

por Mayk Oliveira,

poeta e colunista da Revista Navalhista

(perfil completo)

A escritora e estilista Lili Tosta nos apresenta em seu livro de estreia “Alma Para Confundir Poesias” (Libertinagem, 2025) um poema em formato de fábula carregado de forte concepção de sororidade, o maior pilar do feminismo, e que apostando numa abordagem simbólica e poética faz o contraponto à forma tradicional da literatura de apoio à experiência comum das mulheres, e que possui um estilo mais direto de denúncia e enfretamento. Tosta nos entrega uma obra que costura versos com a linha firme de uma narrativa e desenha uma jornada em capítulos com ritmo que lembra o Cordel, embora se desprenda das amarras temáticas regionais para mergulhar em um campo mais íntimo e universal. E a protagonista dessa travessia é uma heroína cuja caminhada passa pela dor da expatriação, os espinhos do autoconhecimento e a busca por pertencimento.

O texto possui um aspecto peculiar que confere aos versos uma identidade visual inconfundível. Lili Tosta manipula os sinais de pontuação bordando no sentido com agulha e linha. Os pontos finais, vírgulas e dois-pontos surgem em posições não convencionais (todos nos inícios das frases) sugerindo uma escrita que remonta a uma lógica árabe, lida “de trás para frente”, como a própria autora nos adverte nos versos “talvez/ o árabe seja/de frente pra trás/ o português/ de trás para frente/ e eu tenha nascido/ do contrário do avesso”. Tal recurso, longe de ser um mero artifício gráfico, reforça a natureza híbrida do texto entre o visual e o verbal, entre o artesanal e o simbólico. A poesia veste o tecido com a atenção de saber que a estética também é linguagem, também é denúncia, também é abrigo.

No fundo, “Alma para Confundir Poesias” é uma resposta (ou ao menos uma tentativa) para três grandes questionamentos que atravessam a autora. O primeiro deles é a inquietação de um vazio interior, que a move a pensar e escrever. O segundo é o turbilhão das vivências, afetos, saudades, memórias e regras que mudam constantemente, deixando o mundo de pernas para o ar. Essa confusão leva a autora a refletir sobre aquilo que se desfaz no tempo e sobre o que permanece; os ditados simples, que resistem à corrosão e permanecem como verdades habitáveis. Mesmo que em seu estilo de pontuar, estas cheguem de trás para frente, em ritmos reversos, desorganizando certezas para revelar o essencial.

O terceiro questionamento é o mais cru e angustiante: “Será que eu vou passar no moedor de carne?” A evocação violenta e visceral traduz o medo de ser consumida pela vida, de apodrecer no cotidiano, de não alcançar a felicidade. É também a pergunta sobre a própria escrita: será que sua alma está confundindo sua poesia? Mas talvez seja justamente essa confusão, essa mistura entre o eu profundo e a palavra escrita, que torne seu livro tão vivo e humano.

Repleto de passagens e transformações, o caminhar da heroína conduz ao abandono do mundo comum e adentra o reino povoado pelo fantástico. A travessia é abastecida por memórias e vivências que são matéria essencial para se contar uma história com relevo e densidade. Os versos, que oscilam entre o desencanto e o desejo, apontam para uma única e grandiosa ambição: a esperança. A centelha que move a heroína. Ao longo do caminho, encontramos ainda espaço para lições sobre o veganismo, para a ecologia e para reflexões que dialogam com o mundo contemporâneo. A heroína escuta o chamado e mesmo diante de dúvidas e inseguranças não hesita em deixar para trás o mundo comum, suas proteções e comodidades. Parte em direção ao desconhecido, onde os inimigos concretos e cotidianos estão à espera: a falta de emprego, o dinheiro escasso, a casa alugada e o telhado gotejando. Símbolos de um exílio geográfico e profundamente existencial. E é nesse espaço liminar entre o real e o simbólico que surge, metamorfoseado em figura de mentor, um urubu de uma asa só; ave tratada com reverência poética, que seguirá aludindo a justiça. A inspiração confessa vem de Vargem Grande no estado do Maranhão, cidade que acolheu a autora durante sua expatriação, e que é marcada pela constante presença de urubus no espaço urbano. Urubus são aves de rapina que se alimentam de carcaças, ou seja, de animais mortos. Essa evocação descreve a capacidade do feminismo de analisar e desconstruir as estruturas de poder que oprimem as mulheres e outras pessoas, assim como um urubu “come” uma carniça, o feminismo “come” as estruturas de poder e as opressões que elas geram.

A cada desafio enfrentado, a personagem se transforma e aprende a reinventar e reinterpreta as regras desse novo mundo, agora vistas com a lente da sensibilidade e da crítica. No entanto, o maior obstáculo está nas relações humanas, nas pessoas (os machistas, os homens podres) que não compreendem o sabor da vida, que não sabem mastigar os afetos ou temperar os vínculos com apoio e presença. Esse é o monstro mais árido que ela precisa enfrentar. E o faz.

Trata-se de uma jornada pequena apenas no número de páginas, mas grandiosa em densidade emocional e estética. Vitoriosa, a heroína transpõe a noite escura da alma e emerge para a recompensa. Ressurge mais forte e consciente, mais inteira. E é dessa inteireza que nasce a verdadeira dádiva da jornada; o amadurecimento. Neste passo, ao amadurecer suas feridas, encontra enfim, sua cura e um lar dentro de si o que beneficiará a si mesma e aos outros ao acender um lume no meio escuridão.


Lili Tosta

Lívia de Faria Tosta é escritora, artista visual autodidata, mestra em Química pela UNICAMP e estilista de moda pelo SENAC. Em 2024, iniciou sua trajetória no audiovisual ao concluir um curso livre de Direção de Arte em Campinas/SP, e atuar, no mesmo ano, como segunda assistente de arte no longa-metragem Dona Elza (EPTV – Rede Globo). Com o projeto de curta-metragem A Bordadeira, foi selecionada para dois laboratórios de roteiro: o Larb, em 2024, e o Cristalab, em 2025. Atualmente, é artista residente no Centro Cultural Fêmea Fábrica, em Campinas/SP, onde desenvolve sua pesquisa e produção em aquarela, bordado e criação de tintas a partir de matérias-primas naturais. Em 2025, lançou seu primeiro livro, ”.alma para confundir poesias”, pela Editora Libertinagem.

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