O mito grego da Caixa de Pandora trata da chegada da suposta primeira mulher à Terra (Pandora) e do surgimento de todos os males do mundo. Para isso, o mito sustenta que, quando enviada pelos deuses, Pandora não veio sozinha e, com ela, numa história que agora não vem ao caso, foi enviada uma caixa misteriosa que não deveria ser aberta em hipótese alguma.
Certo dia, porém, cedendo à curiosidade inata aos seres humanos que ambicionam o conhecimento, Pandora abriu a tampa dela e deu vazão à infestação de todos os males do mundo. Quando se deu conta do erro que cometera, fechou a caixa e, acometida pela culpa, condenou-se por ter cometido o maior erro da história da humanidade.
Apesar de existirem diferentes versões do final da história, uma delas conta que, assim como sempre acontece quando um erro é percebido, no momento da percepção já era tarde demais. O mal havia se espalhado e dentro da caixa só restara a esperança.
Numa espécie de romantização da desgraça, muitos acreditam que o mito traz a ideia de que a esperança guardada na caixa não significa que, assim como escreveu Kafka, ela existe, mas não para nós, humanos. Ao invés disso, acreditam que ela está por aí, em algum lugar, prestes a ser libertada para curar as feridas criadas pelos males. De modo que, embora Pandora tenha liberado dor e sofrimento no mundo, ela também permitiu que houvesse esperança para a humanidade.
Reduzindo a um ditado popular, o mito da Caixa de Pandora pode sugerir que a esperança é “a última que morre”, porém, é inegável que esse mito tem muitas versões, e a mais crível delas parece sugerir que, de maneira alguma, alguém ousaria abrir essa caixa novamente, e por isso a esperança permanece até hoje guardada.
Quando se traz tal ideia ao cenário brasileiro, a mera palavra esperança, por si só, é capaz de provocar um aperto no coração de qualquer brasileiro esclarecido. E o aperto fica ainda mais dolorido quando se percebe que o discurso que legitimou a vitória do último presidente é fruto da abertura de uma espécie de primeira Caixa de Pandora, arrombada sem trazer esperança alguma. Apenas fôlego àqueles que tiveram as suas brutalidades reprimidas.
Basta um mero diálogo para que se perceba que o alicerce do sentimento de pertencimento — que é disfarçado sob a égide de uma pátria que não existe — reside naquilo que há de mais vil: o ressentimento. Tais indivíduos estão dispostos a se ancorar em qualquer suposição ou mentira que legitime seus preconceitos, incômodos e privilégios. Estão dispostos a repudiar e difamar qualquer mínima vitória daqueles por quem cultivam repulsa: os excluídos, os esquecidos, as vítimas.
Deste modo, como um exército que prega o ódio e perpetua a ascensão da estupidez, passaram a condenar quaisquer atos minimamente deselegantes para a moral conservadora que seus pais lhes impuseram à força, e que agora são enfrentados pelas novas gerações como limitações irrisórias.
Por essa razão, mergulharam em acontecimentos que, por algum deslize, ocorrem uma vez a cada 365 dias, num raio de mais de oito milhões de quilômetros: um cotovelo sobre a mesa durante um almoço que rende um bom papo, uma professora que leva um pênis para o jardim de infância e confunde sexo com educação sexual, ou uma exposição artística promovida por alunos que clamam que o cu é lindo.
Uma outra versão do mito relata que, quando Pandora viu o que havia feito, fechou a caixa e deixou apenas uma coisa dentro. Ela escutou uma voz chamando-a da caixa, suplicando que fosse solta e, convicta de que nada que estivesse dentro poderia ser pior do que os horrores já libertados, abriu-a mais uma vez.
Infelizmente, na adaptação à vida real brasileira, não houve culpa ou sequer percepção do horror promovido no ato de abertura da caixa. Quando o brasileiro que teve sua estupidez suprimida viu os valores terríveis que alimentava em seu íntimo novamente libertos, comemorou e fez um juramento tácito, a si próprio, de que fecharia os olhos para todo mal e faria de tudo para defendê-lo.
Agora que a caixa de Pandora dos sujeitos que foram obrigados a sufocar seus preconceitos foi aberta, resta-nos aguardar o futuro e torcer para que, desta vez, tenha restado alguma espécie de esperança dentro dela.
* Este artigo foi publicado inicialmente em nosso site anterior, chamado Literatura & Outros Blues, no dia 11/08/2021.
Sobre o autor:

Nascido em Salvador, BA, em 1995, Matheus Peleteiro é escritor, advogado, editor e tradutor. Em 2015, publicou pela Editora Novo Século seu primeiro romance, Mundo Cão, agora reeditado. Desde então, lançou nove obras, entre as quais se destacam as coletâneas de contos Pro Inferno com Isso (2017) e Nauseado (2021); a distopia satírica O Ditador Honesto (2018); o infantojuvenil Gael e a Terra dos Vivos (Planeta, 2024); e as coletâneas poéticas Nossos Corações Brincam de Telefone sem Fio (2019) e Caminhando sobre o Fogo (2021).
Além disso, organizou e editou a coletânea de contos Soteropolitanos (2020), deu início ao Selo Editorial ÊCOA – Faça Você Mesmo, em 2021, e produz o podcast 1Lero, no qual entrevista expoentes da literatura contemporânea. Em 2024, também deu início à coleção Poesia55, publicada pela Editora P55, que revela poetas estrangeiros ao público brasileiro.