A navalhista do dia é Cecile Mendonça. A poeta é autora do livro plantar somente onde há bocas famintas (Editora Minimalismos, 2024). Segue 3 poemas.

mata ciliar
nossos pés estão encharcados
é o único jeito de existirmos
mas gosto
você me assegura
expulsa
tudo aquilo que nos mata
vou crescer alguns centímetros
e te enlaçar melhor
você diz
tua seiva percorre em mim
te ensino sobre o tempo das águas
nossas sombras se misturam
entre cochicho das árvores
revela-se o que quer dizer
o silêncio da mata
aprendemos a língua das raízes
descobrimos então
[há um pulso escondido na Terra
parece
acompanhamos o ritmo
torcemos
para secura não nos alcançar

visita
I
abrir a janela
tentar capturar
a risada das crianças
e o choro dos pássaros
espantar a neblina
com os pés
tentar enxergar o sol
[cada vez mais perto é difícil vê-lo
algumas coisas só fazem sentido de longe
II
na geladeira
um bocado de macarrão
que sobrou de ontem
é difícil fazer massa
para uma só pessoa
os fios derramados
no lixo
me lembram:
te encontrei essa manhã
em um sonho
III
foi engraçado
você estava o mesmo
acenou para mim
e acho que não queria
mas sentiu que precisava
conversamos sobre os nossos vazios
por horas
pela mesa
observei seus dedos
curvados entregues
parecia ter se esquecido
de seu próprio corpo
me enganei
você não era mais o mesmo
meu corpo se desarmou
aliviado
IV
a panela de macarrão
sobre a mesa
transformou meu sorriso
em gargalhadas
fiz minha receita favorita
como se estivesse sozinha
o tempo ele
faz coisas engraçadas com a gente
V
tentei manter meus olhos cerrados por horas
não consegui
minhas pálpebras se soltaram
quando nos abraçamos
foi tão triste
não saber o que aconteceria depois
uma aparição doce
uma visão tão bonita
esmagada escorrida pelas mãos
não é o suficiente
mas é melhor do que parece
VI
me pergunto se você
vai me visitar de novo
acho
que quando eu chamo seu nome
você não me escuta mais
eu nem deveria tentar
mas não consigo
sua imagem se derrete
pelos meus dedos
me faz gritar baixo seu nome
mais uma vez

dispor as toalhas
uma ao lado da outra
no encontro das costuras
perceber
as raízes nossas
o sentido
o porquê
você não entende
mas sabe
tem de ser assim
sobre a pia você vê
vestígios meus
o emaranhado de fios tão finos
formam cachos tão lindos
você diz
e isso basta

Cecile Mendonça nasceu em São João de Meriti, no Rio de Janeiro, em 2000. Também morou em Salvador e Fortaleza durante a sua infância e adolescência. É graduada em Jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e artista multidisciplinar, por unir collage a poesia. É autora do livro “plantar somente onde há bocas famintas”, publicado pela editora Minimalismos. Tem publicações de poesia na Antologia “Nós” da Selo Off Flip, na edição de verão de 2024 da Revista Felisberta e na Revista Ruído Manifesto. Já participou de diversas exposições pelo Brasil e em uma na França com os meus trabalhos de colagem.
Maravilhosa poesia 😍