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o tracejado da estrada traz paisagens matos capins postes postos pontes rios pensamentos pastos vacas árvores retorcidas vendedores ambulantes pedágios lagos borracharias ruínas cidades pequenas de ninguém, tudo passando em movimento pelos olhos tão cansados de heloísa, quantas frustrações deixadas para trás, como as imagens no vidro do veículo, quantas culpas acumuladas engasgadas, quantos nós nas linhas da vida, quarenta e oito anos, mas que vida é aquela? quarenta e oito anos de exaustão, tantas imagens da infância, adolescência, vida adulta, chegada à velhice, sem que nada significativo ela tivesse feito, sem que pudesse sentir a tal felicidade, o que seria exatamente essa palavra? certamente algo muito distante do esgotamento que se apodera de seus ossos todos os dias em tantos anos, olha as cenas de sua vida por dentro e as cenas da estrada passando do lado de fora, tanto pasto e pasmaceira, tanto nada sobreposto, e enquanto na estrada tantas vacas mastigam o pasto, heloísa relembra sua própria carne queimada de vaca no abatedouro da vida, a ração fracionada de cada dia, o rasgo no uniforme que precisava de remendo, a gota de óleo no tecido branco, apenas algumas nuances que a diferenciam ou não de tantas outras vacas no pasto, na linha de produção, o peito brilhante sob o sol, a expectativa inútil do nascimento dos bezerros, mais filhotes para o rebanho infinito de almas, as vacas todas amamentando, ou sendo ordenhadas, ou ficando bonitas, servindo servindo servindo servindo servindo, enquanto as cercas de arame farpado limitam seus movimentos, enquanto outros corpos bovinos estéreis são abatidos para também servir, e os olhos oleosos de heloísa, uma vaca cansada parada na paisagem, pastando, enquanto a vida passa por ela em alta velocidade em carros bonitos, mas agora, a placa da rodovia indica um desvio, uma obra, e ela vê com bons olhos o desvio que tomou, olha as palmas quentes formigantes de suas mãos, cada linha traçada, cada envelhecimento, cada marca, ainda sem saber com exatidão a obra ou reforma que fará de si, mas observando tantas vacas e pastos atravessando velozes por suas vistas na janela do carro, ela sente um instante de contentamento, a alegria da vaca após romper a cerca e fugir dos donos, alcançando aquele muito longe, seguindo as linhas contínuas da rodovia, ultrapassando o que estivesse no caminho, corpo animal que não quer mais mastigar a vida e pastar, quer correr correr correr correr, mas percebe também que a vastidão do mundo a aguarda e a apavora, é um medo gostoso, mas ainda assim é medo, começa então a desconfiar de que o mundo seja apenas um abatedouro maior, e ela não quer mais saber de pastar, comer capim, ter o pelo bonito, aguardar o nascimento dos bezerros, ser ordenhada, abatida e servida na ceia, não quer mais seu couro curtido estendido em canto nenhum, olhando as imagens passando pela janela, heloísa quer apenas saber se pode enfim ser uma vaca livre – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –
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– – – – – – – – – – – km 1531 – – – – – – – –

fazem uma pausa no município de divisa alegre, entram na cidade e avistam um pequeno restaurante. depois da refeição, heloísa já sabe que milena ficará alguns minutos tirando fotos de qualquer coisa. resolve passar os olhos também nos arredores. a cidade não possui muitos atrativos. casas simples com portas e janelas beirando a calçada, barracas vendendo queijos, artesanatos e cachaças às margens da rodovia, pessoas comuns enfrentando seus dias. mas do interior de uma dessas casas, algumas vozes interrompem a calmaria. um homem e uma mulher brigam.
— sua puta desgraçada!
heloísa vê que milena parou os cliques e também prestava atenção naquela situação. quando os sons das primeiras pancadas ecoam, as duas caminham até a casa com passos rápidos. o olhar do homem encontra as estranhas pela janela.
— tão olhando o quê? vai cuidar da sua vida! aqui é a minha casa e minha mulher!
milena e heloísa veem então o soco no olho da jovem, que cai no assoalho de madeira.
— eu não fiz nada, eu não fiz nada…
ela repete entre soluços, segurando o rosto ferido. milena tenta pedir ajuda a algumas pessoas que passavam do outro lado da rua, mas ninguém parece se importar. o homem então pega uma faca no balcão da cozinha, que era quase o mesmo cômodo da sala, e vai pra cima da mulher. ela tenta se reerguer, apoiada na lateral do sofá.
a lâmina perfura a barriga da jovem
milena e heloísa abrem a porta. o movimento de milena é rápido e sem cálculos. a estátua branca e azul da nossa senhora que ocupava a estante tinha seus trinta centímetros de altura. o golpe na cabeça do dono da casa o derruba desacordado no chão.
as três mulheres param e se olham por um momento, mas o sangue que escorre da barriga da estranha exige gestos mais velozes, panos limpos e perguntas.
— como é seu nome?
— sueli, meu nome é sueli.
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notas de viagem 3
há pessoas que se enraízam
que são território
fincam suas existências num contínuo com a terra
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e há aquelas que não são de lugar algum
em eterno voo
migração constante, despertencida
o olhar sempre buscando algo – – – – – – – – – – – – – – – –
mas o mundo arranca as pessoas-raízes de seus territórios
e prende as pessoas-pássaros onde não pertencem

Yara Fers (@yara.fers), escritora e editora, residente em Arembepe, no município de Camaçari (BA), apresenta seu mais recente livro, “Destinas”. A obra, que garantiu a Yara a posição de finalista no 9° Prêmio Kindle de Literatura, entrelaça prosa e poesia para abordar temas profundamente relevantes, como a exaustão feminina na sociedade patriarcal, sororidade, violência doméstica, e maternidade compulsória. Nascida Yara Fernandes Souza, em Ribeirão Preto (SP), Yara Fers vive na Bahia há 10 anos. Com formação em Comunicação Social e especialização em Teoria da Literatura e Produção Textual, atua como mentora, professora e editora. Yara é a fundadora da Editora Arpillera e editora do portal Fazia Poesia e da Revista Aorta. Publicou 12 livros, entre poesia, romance e infantis, e é participante ativa de coletivos literários como Escreviventes, Poexistência e Papel Mulher. Além de ser finalista do 9° Prêmio Kindle de Literatura, Yara já foi premiada em diversos concursos, incluindo o Concurso Tâmaras 2023 e o Prêmio Book Brasil 2022, destacando-se como uma voz poderosa na literatura contemporânea.