THEO G. ALVES – Deus me perdoe por quem eu sou [trecho do romance]
THEO G. ALVES – Deus me perdoe por quem eu sou [trecho do romance]

THEO G. ALVES – Deus me perdoe por quem eu sou [trecho do romance]

Matador ele não era

Quando os três homens da polícia desceram do carro, sob o barulho da sirene ligada e as luzes piscando frenéticas mesmo com o sol do meio-dia, Severino estava sentado no segundo batente que levava à porta, as canelas arqueadas desde o nascimento fincando os pés no par de chinelos de borracha já muito gastos.

As pernas não seguraram o peso do acontecimento e foram ruindo como a parede do barreiro tornada oca pelos formigueiros no tempo de seca. A água que havia levado para longe o açude no inverno era o sangue que tingia os pés e as mãos do pedreiro ante os mortos deitados na calçada.

Dois revólveres e uma espingarda apontados para ele, os gritos incompreensíveis dos policiais, toda a vizinhança se apinhando agitada para fora de suas casas e o burburinho que se intensificava, um grito, outro grito e as mulheres da rua chamavam por meu Deus, meu Deus, o que Severino fez, pelo amor de Deus!

No entanto, Severino não pensava em Deus, nos vizinhos nem na polícia apontando e gritando para ele. Em verdade, o pedreiro de pernas tortas não pensava em coisa alguma, preenchido de cima abaixo por uma sensação profunda de vazio, algo como a sensação tão familiar de fome agora deslocada para o peito.

O martelo avermelhado caído diante de si, os braços apoiados sobre os joelhos, a cabeça e olhos apontando para o alto enquanto os homens da polícia se aproximavam, gritando mais coisas que Severino não sabia ouvir até que o coturno de um deles o atingiu na testa, jogando-o inconsciente ao chão.

Ataram-lhe os pulsos com as algemas e chutaram-lhe o corpo várias vezes, sem que acordasse. Alguns dos vizinhos intentavam correr para fazerem parar os policiais, mas as esposas seguravam-lhes pelos braços dizendo é a polícia, homem, é a polícia. E estacavam diante da cena, diante do vizinho prestativo e silencioso, de pernas arqueadas, que saía de casa todas as manhãs para os trabalhos incertos que encontrava pela cidade.

Severino era pedreiro na maior parte do tempo. Porém, era com frequência servente de obras, pintor de paredes, encanador sem diploma, eletricista de gambiarra, carregador de feira, limpador de mato, arrancador de tocos, tirador de enxu de abelhas, mecânico de bicicletas e o que mais a necessidade mandasse, de acordo com a fome e a precisão.

Mas matador ele não era. Pelo menos, a necessidade nunca o tivera feito ser.

Dois homens da polícia carregavam-no pelos sovacos, desacordado, até o camburão. O outro dizia coisas que ninguém compreendia pelo rádio do carro a quem um chiado indecifrável respondia. Ninguém ousava se aproximar de Severino nem dos corpos ensanguentados, deitados na calçada quente daquela hora.

Enquanto isso, um redemoinho ensaiava levantar-se no meio da rua, juntando a poeira e os papeis velhos esquecidos pelo carro do lixo. Tudo era calor e as cores do meio-dia pareciam todas amarelas e vivas, abertas, iluminando excessivamente o vermelho ferruginoso que descia dos corpos de Josinaldo e Dalva, atravessando a calçada até pingarem no dorso de barro da rua seca. No alto, o céu era inescrupulosamente azul.

Quando meteram o pedreiro para dentro do camburão e fecharam com força a porta de trás, as mulheres foram acudir aos mortos na calçada, ao que foram repelidas pelo homem que falava e ouvia ao rádio. Bateu com força o pé no chão, fazendo subir poeira, e gritou saiam daqui, porra, saiam daqui, suas raparigas e apontou para elas a espingarda apoiada na cintura.

O carro da polícia deu a partida levantando fumaça e poeira até tossirem os meninos que acompanhavam a cena excitados, tirados do tédio de janeiro pela cena de filme que se dava em frente às suas casas.

Meu Deus, meu Deus, isso é Dalva e Naldo que Severino matou, gritava uma mulher que se aproximava rapidamente dos corpos. O policial conteve-a pela cintura e berrou algo que ninguém entendeu, abafado pelos gritos da mulher que dizia apontando para Dalva ele matou a menina, pelo amor de Deus, ele matou a menina.


Theo G. Alves

Theo G. Alves nasceu em dezembro de 1980, em Natal, mas cresceu em Currais Novos e mora em Santa Cruz, ambas no interior do Rio Grande do Norte. Foi premiado em concursos nacionais e regionais tanto por sua prosa quanto por sua poesia. Publicou os livros “Pequeno Manual Prático de Coisas Inúteis”, “A Máquina de Avessar os Dias”, “Doce Azedo Amaro”, “Caderno de Anotações Breves e Memórias Tardias” e “Inventário de Tão Pouco”, todos de poesia; “Por que Não Enterramos O Cão?”, de contos; e “A Cartomante que Adivinha O Presente” e “Peço Desculpas por esta Crônica (e por outras)”, de crônicas. Publicou ainda o romance “Barreiro das Almas”. Já teve textos publicados em diversas antologias e revistas de diferentes partes do país. Theo continua escrevendo, entre silêncio e barulho, por acreditar na palavra como caminho, inevitavelmente.

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