SARA LIBERATO – Do outro lado [conto]
SARA LIBERATO – Do outro lado [conto]

SARA LIBERATO – Do outro lado [conto]

O som matutino que vinha do lado de fora começara a ressoar em meu quarto, o qual, ao ouvir, era um bom alarme para despertar. Estava eu, deitada de bruços, esperando o dia começar para, enfim, levantar-me de uma noite sossegada, mas não o suficiente para evitar sonhos inquietantes. Minha mente não havia ainda se acostumado ao novo habitual desse ambiente. Desde que me mudei de bairro, parecia que tudo em mim relutava em aceitar o apartamento onde hoje resido. Não tive paciência até então para conhecer e me acostumar com o dia a dia da vizinhança, e pasmem, com a natureza local também, visto que aqui os pássaros cantam com muita disposição, o vento que chega é ensurdecedor, o dia mais movimentado e a noite, mais soturna.

Com o nascer do sol completo, percebi que havia deixado uma fresta da porta aberta antes de me deitar, pois a luz incidia diretamente sobre o meu rosto. Com um rápido impulso, virei a cabeça para o outro lado e avistei alguém, o que, por um breve momento, me assustou. Mudei de posição para ver melhor. Era uma mulher. Tentei recordar seu rosto, mas não a reconhecia de nenhum lugar. Até hoje eu não havia prestado atenção nos detalhes do bairro e, muito menos, em quem morava por aqui.

— Eu deveria me atentar mais. Preciso de novas convivências. – falei enquanto me levantava.

Fui direto para a penteadeira. Pela hora eu tinha certeza de que a minha aparência não estava uma das melhores, apesar de que quase ninguém focava muito nela. Eu mesma não me dedicava muito atenção. Não me interessava pelo que se relacionava a mim. Até então, só vivia o dia a dia sem ligar para os extras. E nem para outras pessoas. Talvez por isso também que eu não havia ainda percebido aquela mulher, a qual não parava de me olhar. Isso era estranho para mim, pois nunca tive proximidade com vizinhos, mesmo que ela estivesse apenas me observando.

— Quem será ela? – Me perguntei – Por que olha tanto para minha direção? Será que também é nova no bairro? Se sim, possivelmente chegou depois de mim.

Resolvi seguir o que estava fazendo e também comecei a olhá-la mais. Assim que bati o meu olhar nela novamente, me surpreendi com o jeito como me olhava. Não apenas me observava, como parecia me descobrir. Atenta e curiosa, como se tivesse as mesmas perguntas que as minhas em sua mente. Acaso achasse que eu poderia ser uma pessoa nova no bairro. Ou será que ela me conhecia de algum outro lugar? Deveria perguntar quando tivesse a oportunidade, mas não sei se seria tão fácil.

Lembrei-me do horário e fui me arrumar. Comecei a tirar minha camisola, porém fiquei envergonhada com aquela mulher ainda me observando; então, saí de seu campo de visão e entrei no closet. Aqui, não posso ser vista por ninguém, exceto pelos quadros de moças vintages com olhares fixos em mim, os quais escolhi para decoração antes de me mudar. Agora julgo como uma escolha nada agradável, visto que me lembrava daquela mulher observadora de minutos atrás. Caminhei direto ao armário esquerdo, abri e peguei a roupa que havia separado na noite anterior. Nada extravagante, apenas algo confortável.

Enquanto saía do quarto não pude deixar de notar a presença daquela mulher até agora olhando em minha direção. Ela também estava arrumada e muito bonita ao meu ver. Até poderia se dizer que íamos ao mesmo lugar. No entanto, eu tinha certeza de que, onde quer que ela estivesse indo, seria para um local mais notável; o que não era exatamente o nível de ambiente o qual eu estava partindo. Não havia algo tão de importante em minha rotina como aparentava ter na dela. Ou talvez eu esteja imaginando demais sobre a sua vida, dado que já escuto o barulho de portas sendo fechadas, seguidos por passos apressados no concreto da calçada, me alertando de que eu deveria ir logo ao trabalho também. Saí do meu quarto, peguei as mesmas botas de sempre na sapateira perto da estante, calcei-as e entrei na cozinha. Pelo visto, aqui não se faz presente a imagem daquela mulher. Agora, talvez, eu pudesse relaxar a mente por um instante e, claro, saciar meu estômago vazio.

Quando finalmente fechei a minha porta, pude seguir com o novo dia que viria. Desci as escadas às pressas com uma repentina animação, abri o portão do prédio e fui recebida por um vento forte. De repente, toda a euforia que eu senti sumiu. Isso acontecia sempre que eu saía do meu apartamento, como se o novo dia trouxesse a promessa de um recomeço. Porém, acredito que não adianta só sentir algo que lhe satisfaça por um tempo. Algo que talvez aquela moça deva sentir constantemente. Segui com a minha caminhada diária até chegar na estação de metrô, mas, dessa vez, com os olhos atentos a cada pessoa que passava. Tentei achá-la em algum rosto desconhecido; entretanto, minha procura não resultou em nada. Não a vi em parte alguma do  bairro, o que atiçou ainda mais minha curiosidade. Pensei na possibilidade dela ser uma projeção da minha mente, porque havia algo em seu olhar que me incomodava; uma forma de me observar que parecia íntima demais. O jeito como me olhava mais cedo fez com que eu me sentisse estranha comigo mesma, quase como se me conhecesse melhor do que eu.

A rotina automática do trabalho me engoliu mais uma vez, como em todos os outros dias, me deixando cansada – mais da função que carrego, a qual não me satisfaz, do que pelas horas pesadas do turno em si. Assim que terminou, deixei o estabelecimento e praticamente corri para a calçada oposta, com cuidado para não pisar nas poças de lama formadas pela chuva que ocorrera no começa da tarde. O céu até agora estava cinza, o que deixava o ambiente externo mais sem graça. A ansiedade em meu peito só crescia ainda mais a cada passo rápido dado por mim. Precisava voltar para casa. Ela provavelmente estaria me esperando através de sua janela. Ou, pelo menos, era o que eu acreditava. Ela foi uma grande descoberta na minha vida, já que, devido à grosseria da minha parte nos dias anteriores, eu não parava para vê-la e, obviamente, não a enxergava. Isso se torna irônico quando eu lembro que ela sempre esteve ao meu lado, desde que chegara ou desde que eu havia chegado. Essa informação ainda era meio confusa para minha mente. Mas sei que ela era muito mais cordial comigo do que eu era com ela e até com os outros. De manhã, ao olhá-la, senti uma sensação diferente. Ela parecia ser uma pessoa com a qual se poderia ter uma conversa proveitosa. A atenção distinta em mim me deixou com mais vontade de conhecê-la.

Cheguei à rua do meu prédio e, mais uma vez, não a encontrei. Será que ela realmente havia saído e só se arrumara para trabalhar de casa? Ou, se saiu, talvez já tivesse voltado. Entrei depressa no prédio, subi as escadas com toda a força de vontade que há tempos não sentia, entrei no meu apartamento e fui direto ao meu quarto. Abri e bati a porta no alvoroço, saltando como um gato para a poltrona perto da televisão. Tirei as botas molhadas para ficar mais confortável e olhei, hesitante, para onde aquela mulher possivelmente estava a olhar para cá mais cedo. Tomei um leve susto ao vê-la novamente. Embora eu esperasse por isso, não me acostumei com aquela repentina espectadora. Pelo visto, ainda estava bonita, mesmo com a chuva que pegara. Sai de onde estava e adentrei no banheiro. Precisava me trocar e tomar um banho para ficar decente. Porém, pensei com calma e resolvi observá-la um pouco mais de tempo e, com uma certa coragem, tentar conversar com ela. Voltei para lá, sentei na cama, respirei fundo para acalmar o meu coração acelerado dos rápidos movimentos que tive e, com delicadeza, encarei na sua direção. Atingi uma concentração tão inexplicável, que parecia que conseguia conhecê-la mesmo sem me apresentar para ela. Os meus olhos se direcionavam a toda a sua fisionomia. Tudo o que era dela, eu via e me interessava a cada olhada. Havia em sua aparência alguma coisa que passava a impressão dela me compreender verdadeiramente. Eu sorri para ela e recebi o mesmo em troca. Eu me senti calma só de olhá-la com atenção. De súbito, falei algo para iniciar uma possível comunicação entre nós duas.

— Ei, você! Garota, por que olha tanto para cá? Como se chama? Nos conhecemos de algum lugar?

Ela se interessou na conversa e abriu a boca para responder. Mas eu não ouvia o que ela estava dizendo. Talvez fosse a distância ou um pouco de timidez que abafava a sua voz.

— Não consigo te escutar. Por que não nos aproximamos um pouco?

Levantei da cama e andei um pouco para frente com uma certa agilidade. Ela fez o mesmo, então talvez estivesse me escutando. Tentei mais uma vez.

— E agora? Será que posso ouvir sua voz? Eu, de verdade, gostaria de te conhecer.

Sem sucesso no meu desejo. Passei, então, a observar mais detalhes que antes não havia prestado atenção: gestos, expressões, movimentos. Até que notei algo familiar nela. Meu coração acelerou. Aquela mulher, que me parecia tão próxima, mas ao mesmo tempo, inalcançável, era mais do que uma pessoa. Era meu reflexo. Ela me espelhava. Mostrava o que estava mais em meu interior; algo que eu desconhecia, pois o que eu enxergava era alguém que eu evitava sem ao menos perceber. E, naquele instante, ao finalmente vê-la, senti que talvez estivesse começando a me reconhecer.


Sara Liberato – Nasceu em Sobral (CE) e é universitária. Descobriu sua paixão pela escrita e, aos 18 anos, já se dedica a projetos autorais, incluindo romances. Gosta de explorar a complexidade humana e o cotidiano em suas histórias. Atualmente, dedica-se a aprimorar sua forma de escrever e desenvolver sua trajetória como autora. Sonha em publicar suas obras e compartilhar com o mundo suas narrativas.

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