Com a navalha: Lícia Mayra. Ficaremos com 4 poemas dela:

ophidia
não era pra você dizer que me ama.
grite comigo
bata na mesa
confira o ponteiro da gasolina
como das outras vezes
mas não me venha
com águas nos olhos
e palavras há tanto caladas
não suporto cheiro de naftalina.
você me faz mentir, amor
inventar problemas
forjar um choro
inverter o jogo
colocar nas suas mãos a culpa
que eu deveria amargar
e depois
vou lavar os pratos
que você deixou de ontem
amor, às vezes eu acordo assustada
com essa que dorme ao seu lado
e na madrugada
me pergunto
se ainda sei sentir
qualquer coisa.

sorvedouro
você não tem culpa, amor
claro que não
a louca sou eu
jogo na sua conta
os filhos que não gerei
o concurso que não fiz
o livro que não escrevi
pior
sirvo calada o jantar
lágrimas incompreensíveis nos olhos
perdoa, amor
não sou sincera contigo
cá dentro sei bem o motivo dessas águas
perdoa, amor
quero voltar ao passado
ao ônibus, ao campus, ao sonho
quero fazer tudo de novo
sem te ter ao meu lado
ao mesmo tempo me apavora
a visão de uma vida inteira sem tuas órbitas
perdoa, amor
é que o tempo passou
você não viu?
toda noite lado a lado
todos os domingos e dias santos
desabotoando sutiãs como quem reza um rosário
algum dia realmente nos despimos?
perdoa, amor
nunca aprendi a amar
nem a fazer sentido
tudo em mim é covarde e mesquinho
perdoa, amor
eu sei as respostas todas
essas águas não são novas
hoje prestes a fazer redemoinho

guaramiranga
vamos para guaramiranga
na estrada a gente faz uma criança
permita-me só mais esse capricho
rasgar o seio em fissuras
calar o grito
para não assustar o ser
que vai me consumir
gota a gota
por anos a fio
até matar
o Eu
assim talvez
no peito só caibam
gengivas rosadas
sorvendo sonhos

grilhões
ser amada
é maldição
difícil de quebrar
deixa marcas
e segunda via
de receitas psiquiátricas
no balcão da farmácia

Lícia Mayra é casada com a prosa, mas flerta com a poesia quando dói. Autora de Rogai por nós (independente, 2021) e Vingança é um prato que se come com Chandon (Urutau, 2023). Pode ser encontrada se abanando de calor em Picos, Piauí, ou no instagram @liciamayra.
Como não amar? Poemas que doem e ainda assim são maravilhosos, Lícia!