A areia da praia no fio da ampulheta: a balada do timoneiro marulho [resenha]
A areia da praia no fio da ampulheta: a balada do timoneiro marulho [resenha]

A areia da praia no fio da ampulheta: a balada do timoneiro marulho [resenha]

por Mayk Oliveira,

poeta e colunista da Revista Navalhista

(perfil completo)

Evocando o sagrado, o livro Mar de Palavras (Urutau, 2025), do escritor e poeta Jandeilsom, se faz templo de santificação. A construção lírica dessa obra acontece, em muitos momentos que partem do azul (o blues?), numa espécie de lamento e saudade que se dá no confronto entre o mar e as forças místicas da terra, entre as forças sociais que compõem os arredores: os golfos, a areia, a água, o naufrágio, a favela. Um lugar dos eleitos e do silêncio na água do mar, cujo o rosto não se afoga; refúgio onde o inconsciente se abriga para escapar do assédio instigante do consciente.

Dentro dessa poética, existem momentos de apaziguamento que quando, vencidas todas as forças antagônicas, mar e palavra se confundem, e já não desejam mutuamente descer em terra firme e querem apenas contemplar a água, o sol, a lua, a flora, a fauna. O itinerário perfeito para o eu poético. É digno de nota cita a disposição anímica — muitas vezes mal compreendida como uma simples situação da alma ou como objeto artificial da observação. Aqui, a disposição anímica, ao contrário do que se pensa como um estado interno isolado, revela-se nos versos como uma forma de estar no mundo, enlaçado às coisas e afetado por elas de maneira direta “mar de tim /azul como o céu/ de todo o meu ser/é momento/é memória…”. O poeta não é um objeto que se observa de fora, mas um modo de existir, onde o sentir e o compreender se confundem com o ambiente que nos cerca. Dessa maneira, a disposição anímica dissolve a fronteira entre o “dentro” e o “fora” fazendo com que a alma e o mundo estejam em comunicação contínua, quase indistintos. A disposição da alma ou da noite é, no fundo, falar do mesmo movimento: aquele em que o ser se abre ao mundo e é por ele moldado. Trata-se de um conceito fundamental da poética.

Sobre o tempo nos poemas, nota-se uso dos tempos verbais é significativo: há, nos poemas, um predomínio do presente do indicativo. O conceito de presente deve ser aqui entendido de forma literal, pois o tempo, em “Mar de Palavras”, revela o não distanciamento do eu lírico diante da paisagem. Ora presente, ora pretérito “nadam em sincronia/ preenchendo/ o oceano” e mesmo nos versos derradeiros, o tempo ainda pulsa. A linguagem é um dos elementos essenciais da obra do poeta. Aliada ao presente do indicativo, as orações independentes revelam um modo próprio de fazer poético, predominante na navegação dos versos. Esses versos exigem uma ação momentânea no ato de falar sobre a imagem captada, flagrada pelo olhar no instante em que acontece. A lírica também se marca pelo uso do infinitivo impessoal, que aqui não sofre qualquer embargo de significação, ao contrário, ganha força como nos versos “lagrima cai/ mais sal no mar/ o tempo/ não das coisas/ me olha/sem piscar”. Indica que a ação se estende infinitamente, como as ondas e as noites. Portanto, os tempos verbais indicam que “as coisas” transcorrem no presente num um fenômeno essencialmente lírico. Jandeilsom escreve mergulhando os versos na água salobra, formando estrofes dentro da rede lançada no tempo. E quando o poema vem, é peixe-luz, é sopro de santo. Porque onde a poesia respira o mundo ainda pode ser salvo.

Diante da folha em branco, o poeta risca o silêncio com o som das teclas, sente o mar completo, umedece o papel, faz orações à musa Iemanjá. Igual a um timoneiro, o poeta trabalha: atravessa o mar de palavras como uma fragata (barco/pássaro), dançando, ondulando, pescando aruanãs — e sempre anunciando que essa natureza limpa precisa da poesia. A poesia não pode ser poluída. A poesia deve deter a devastação. Ele continua o trabalho expandindo os seres, iluminando sentimentos, buscando na memória, assistindo no mergulho, encontrando as águas e surfando na espuma da marola. Trabalha toda a inventividade em busca da sua poesia. Ele é se torna a própria correnteza; correnteza que forma pequenas ondulações de emoção. O trabalho de Jandeilsom é marcado por essa sensação ambivalente: ponto de chegada, ponto de partida. Sempre a observar a paisagem, sempre desejoso, sempre com a vela pronta para velejar. E nunca recolhe os pensamentos pois navega no mesmo sopro da correnteza que conduz sendo ela a bússola do instante. Ambos, mar e palavras, se escrevem com o sal da vida e o brilho do desejo. Porque quem vive da poesia nunca recolhe os pensamentos, mas deixa-os livres, como gaivotas que desenham o céu com saudade de mar.


JANDEILSOM

JANDEILSOM, paraibano 40 anos, vive na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro, desde os anos 90. Escritor e poeta. Autor de Zezinho da Rocinha (2022), Nevoeiro dos Tempos: Contos Obscuros (2021) e Solidão além do que vejo (2012). Participou da Motirõ – Escola de Criação Literária (2023), do CLIPE Casa das Rosas (2024) e da Formação de Escritores Machado Quebradeiro na ABL (Academia Brasileira de Letras) 2024. Criador do canal Na Margem de Poesia Falada, se inspira na riqueza cultural das periferias e favelas.

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