por Soraya Viana,
professora, tradutora e colunista da Revista Navalhista
Mote, Belchior, glosa: um espelho vivo de delírios poéticos contundentes
No preâmbulo à sua coleção de plaquetes, o poeta Giovani Miguez define o objeto livro como “um documento que estabelece os modos como nos fazemos presentes na realidade”. Ainda de acordo com ele, a leitura e a escrita são “tecnologias de cuidado”.
No volume de número quatro das plaquetes, intitulado voz, belchior, navalha ‒ ao poeta que não se calou (Editora do Autor, 2025), Miguez ilustra sua tese por meio de percepções poéticas acerca da obra do cantor e compositor sobralense.
Impressos em abundância na obra deste, a singularidade de perspectiva, o ativismo político e o lirismo filosófico são alguns dos elementos que o livro retoma e espelha.
Nessa obra, o autor coloca seus versos a serviço da elaboração de uma espécie de dedicatória a cada um dos quatorze álbuns de Belchior, em ordem cronológica. Em poemas com títulos como “Capítulos da ausência” e “Melodrama necessário”, Miguez logra estabelecer uma intertextualidade com a verve de cada disco ao mesmo tempo em que dá vazão ao arrebatamento que a poesia afiada do compositor e cantor lhe causa.
Sorvendo o lirismo das canções e a sua potência discursiva, o poeta salienta a dimensão profunda e crítica da obra de Belchior. Por meio de suas reflexões, ele nos mostra que álbuns como “Coração selvagem” e “Era uma vez o homem e seu tempo”, ambos da década de 1970, estão imbuídos de lírica e política ainda relevantes e cada vez mais urgentes no Brasil atual e no mundo.
entre delírio e a lucidez nua
o teu paraíso era um espelho
trincado e vivo
nele, reflexo
mas também desvio
(p. 20)

Ao refletir sobre o que denomina a “contradição fértil” da música do cearense, o autor introduz conceitos aparentemente opostos em muitos de seus poemas. Dessa forma, ele descreve a poesia de Belchior como “um abrigo inquieto”, e a sua voz, fonte de “doçura crítica”.
É altamente recomendado aos leitores, enquanto fazem a leitura da plaquete, realizar uma imersão na discografia do artista. Assim é possível ver com clareza algumas das características autorais aqui citadas e visualizar a lucidez de ambos os poetas em suas construções literárias.
Além de reavivar questões filosófico-sociais da obra musical, a candência das palavras de Miguez nos empresta, primordialmente, seu “senso rebelde de pertencimento”. Nesse sentido, ele consegue envolver o leitor e ouvinte na sina do poeta no mundo capitalista, que sem coro atrás/ (…) canta sozinho (e) insiste vivo.
Conforme contou em sua entrevista à Revista Navalhista, Miguez vê no transbordar poético uma necessidade existencial. Para o autor, tanto quanto para o compositor, a poesia inerente ao mundo e à experiência (da divina comédia) humana é primordial no resgate do sentimento impulsionador para a construção da sociedade de cuidado que carecemos arquitetar.
Assim, na mesma proporção em que comenta e reaviva os temas de Belchior, Miguez enverga a elegância de ser fiel a si mesmo ao trazer à luz algo intimamente seu (É o novo é o novo é o novo…). A profundidade e a delicadeza da poesia miguezina ensejam uma fértil travessia, em que também o leitor vê brotar no próprio espírito ideias delirantemente lúcidas. Essa é a maneira do autor manifestar que amar livros e canções nos rejuvenesce e conflagra em nós a chama da mudança das coisas, de dentro para fora. O maior mérito de Miguez em voz, belchior, navalha, é, portanto, fazer de sua crônica poética afiada e branda uma ode não somente a Belchior, mas ao poder da poesia, da escrita e, por extensão, da criação artística. Por meio de seu trato da obra do grande pensador brasileiro, ele cuida também de um legado e uma consciência que são de todos nós.

Giovani Miguez é poeta, escritor e servidor público. Especialista em Sociologia e Psicanálise, mestre e doutor em Ciência da Informação, com formação em Biblioterapia e mediação de leitura. Nascido em Volta Redonda (RJ), hoje reside no Rio de Janeiro. É autor de 18 livros, entre eles os recentes Um elogio à preguiça, Amor fati e Notações paridas (Uiclap, 2024). Na sua poesia, Miguez explora a expressão e reflexão existencial. Ora lírico, ora político, ora científico, mas sempre est(ético), o poeta segue sendo profundo em suas generalidades.