FERNANDO RICK – Pedro está morto
FERNANDO RICK – Pedro está morto

FERNANDO RICK – Pedro está morto

Pedro acordou certa manhã e entendeu que estava morto. Não foi alguma sensação nova que lhe fez entender sua condição. Tampouco algo em sua aparência. Tudo estava exatamente como sempre esteve. Seguiu os mesmos rituais que fazia todos os dias ao acordar, desde que se entendia por gente. Escovou os dentes; fez a barba; tomou banho; vestiu uma calça de sarja; uma camisa de mangas curtas; um sapatênis de cor neutra; sentou-se sozinho à mesa da cozinha e tomou um café apressado; porém, desta vez, não partiu correndo em direção ao trabalho.

Precisava descobrir como havia falecido. Teria sido uma morte natural? Ou talvez uma tragédia violenta? Pouco provável, já que havia atravessado seus 53 anos vividos de forma pacata e tranquila. Mas, nunca se sabe, o mundo é um lugar perigoso. Cada dia mais perigoso. Você olha em volta e as ruas estão cheias desses tipos estranhos.

Resolveu começar sua investigação pelos lugares que costumava frequentar. Como quase não ia a lugar algum, não foi difícil traçar sua rota. Entrou em seu Fiat Uno Mille 2002 e engrossou o estafante trânsito matutino da terça-feira em direção à pequena casa conjugada que fica em uma travessa da Avenida Sapopemba, uma das maiores vias da América Latina, que corta grande pate da Zona Leste de São Paulo, e cerca de 40 minutos depois, tocou a campainha de Dona Augusta, sua mãe.

Pedro? Você não deveria estar no trabalho?

Encarou a mãe por alguns segundos, por trás das grades de ferro do portão da humilde casinha, em um misto de confusão e decepção.

Bença, mãezinha. Na verdade, eu, queria te perguntar, se por um acaso, não aconteceu algo comigo aqui na casa da senhora?

Dona Augusta fixou os olhos no filho com a expressão de quem espera um gago tentar concluir uma frase complexa.

O quê?

Comigo, mãe! Não aconteceu algo comigo enquanto estive por aqui? Algum acidente ou coisa do tipo.

Você está usando drogas, Pedro Henrique? Depois de tudo que tive que abdicar na minha vida pra te transformar em um homem direito, você se envolve com drogas? 

Ahn?!

Ou é bebida? Aposto que deve ser mulher e bebida. Não adianta, você passa anos dedicada a moldar a moral de um filho, e a primeira umazinha qualquer que aparece, acaba com o trabalho de uma vida inteira em uma noitada!

Mãe, o que a senhora está falando?

Anda, desembucha, Pedro Henrique! É mulher, não é? Te fez perder o emprego? Eu sabia que cedo ou tarde isso ia acontecer. Por sorte o seu pai já está morto, senão ele morria agora, de decepção do filho que ele colocou no mundo!

Como que hipnotizado, olhou a mãe falar por sabe-se lá quanto tempo. Virou as costas e com a mulher ainda vociferando trilhões de palavras que já não conseguia entender, entrou em seu carro e partiu. Se ele não morreu na casa da mãe, então o outro lugar em que provavelmente se deu a tragédia, deve ter sido no emprego. Eram os dois lugares que passava a maior parte do tempo de sua vida. Mesmo quando não estava nesses locais, de certa forma ainda estava, pois sempre que deitava a cabeça no travesseiro, era para eles que retornava. Fosse nos sonhos ou nas noites de insônia.

Tomou a Radial Leste completamente travada pelo mar de veículos que todos os dias adentram as mesmas vias transbordando de carros, ônibus, motos, vans e caminhões, em direção a seus trabalhos e compromissos inadiáveis, faça sol, faça chuva, e seguiu em direção ao centro da cidade. O edifício possui um estacionamento destinado a seus funcionários, com cerca de 80 vagas aleatórias à disposição, e Pedro estacionou na mesma em que havia deixado o carro nos últimos 32 anos de sua vida. Deu bom dia a Antônio, o velho porteiro do prédio onde fica a empresa de cobranças na qual trabalha, mas Antônio não pareceu estranhar a presença de Pedro.

Seu Antônio, o senhor está sabendo de alguma coisa?

Que coisa, senhor Pedro?

Se aconteceu alguma coisa estranha por aqui. Se aconteceu alguma coisa comigo.

Com o senhor? Eu não tô sabendo de nada, não, senhor Pedro.

Entrou no antigo elevador e subiu os oito andares que o levavam até seu escritório. Nenhum dos 14 funcionários que trabalhavam em suas respectivas baias, sequer levantaram a cabeça em direção a Pedro. Sentou em sua cadeira ergonômica, mas desta vez não ligou seu computador. Arrastou sua cadeira cerca de um metro para o lado e colou na divisória que separa sua baia da de Cícero, seu colega de trabalho.

Ô, Cícero. Aconteceu alguma coisa?

Aconteceu o quê?

Aconteceu alguma coisa comigo?

Com você? O que aconteceu?

Não, cara. Eu quero saber se aconteceu alguma coisa comigo, aqui no trabalho.

Aqui no trabalho? Que eu saiba, nunca aconteceu nada com você.

Como poderia ser? Se não morreu nem na casa da mãe e nem no serviço, o que teria ocorrido? Provavelmente foi algo ainda mais obscuro e sinistro do que imaginava. Por um momento teve o ímpeto de apertar o botão retangular que liga o PC de sua estação de trabalho, mas se conteve. Estava morto e precisava saber o que se deu. Passou alguns minutos sentado, encarando o monitor desligado à sua frente, apenas o som de teclas sendo digitadas tomava o ambiente. Levantou e saiu. Desceu no elevador encarando sua própria imagem no espelho que tomava grande parte da parede oposta a porta. É assim que um morto se parece?

Saiu do prédio pela porta da frente e automaticamente se dirigiu ao Bar Tradição, onde costumava almoçar desde que o Buteco do Freitas fechou há 12 anos. Sentou onde sempre sentava, na última mesa do bar, encostada à parede da cozinha e bem afastado da rua. Em pouco tempo surgiu um garçom que Pedro nunca havia visto no estabelecimento.

Boa tarde, senhor. Vai de quê hoje?

Ué, cadê o Juvenal?

Parece que o Juvenal teve um infarto. Ontem a noite.

O Juvenal morreu?

Não, ele tá vivo! Mas os médicos mandaram ele ficar uns dias de molho, pra se recuperar.

Pedro permaneceu estático, olhando para o garçom mas ao mesmo tempo não vendo nada.

E aí, patrão? Vai o prato do dia?

Pode ser.

E pra beber? Uma Coca?

Pode ser.

O Juvenal infartou. Ele parecia tão saudável. Sempre deslizando por entre as mesas do Bar Tradição, sorridente com aquele bigodão tão característico. Quantos anos será que ele tinha? Engraçado, você mantém uma relação diária com uma pessoa por tantos anos, ela acaba parecendo tão familiar, tão íntima. Mas então algo acontece, ela desaparece do mundo e você se dá conta de que mal a conhecia de fato. Será que ele era casado? Tinha filhos? Ele parecia ter filhos. Parecia um homem de família. Um homem de bem.

O garçom voltou com o bife à rolê e a Coca. Pedro mastigou a comida sem sentir o gosto. Poderia estar mordendo um gato morto e daria no mesmo. Mastigava, mastigava, mastigava, engolia. O olhar perdido pelas mesas do bar. O garçom desconhecido flanava de um cliente a outro. Mastigava, mastigava, mastigava, engolia.

Ei, garoto!

Fala, chefe!

Você sabe se o Juvenal era casado? Se ele tinha filhos?

Não sei te dizer, não, viu. Me chamaram de última hora pra cobrir o cara, mas eu não conheci ele, não.

Mastigava, mastigava, mastigava, engolia. Gole de Coca.

Você por acaso ficou sabendo se aconteceu algo por aqui ontem? Se aconteceu algo comigo?

Ih, não tô sabendo de nada, não, viu? Mas eu posso perguntar pro Marcão, que é quem tava aqui ontem. É nesse horário mesmo que o senhor vem?

Sim, eu almoço aqui todos os dias úteis, sem falta, no mesmo horário!

O garçom foi até Marcão, que estava ancorado no caixa do bar cobrando um cliente. Pedro observou os dois conversando, Marcão fez um sinal simpático cumprimentando. Poucos segundos depois, o garçom voltou.

Olha, chefe, o Marcão disse que aqui nesse bar, nada nunca aconteceu com o senhor, não.

Mastigou, mastigou, mastigou, engoliu. E agora? As opções praticamente acabaram. Gole de Coca. Onde eu poderia ter morrido? Um acidente de trânsito é pouco provável, já que o carro continua intacto. Não possuía amigos próximos. Estava seguro no que se referia aos perigos da boemia, pois nunca havia bebido e também não era de frequentar bares e boates. Como então poderia ter se dado sua morte?

Entrou no carro e como sempre fazia, manteve o rádio desligado. Nunca entendeu o que as pessoas achavam de tão especial na música. A esta hora da tarde o trânsito já não era tão denso. A maioria das pessoas estavam em seus respectivos trabalhos, enquanto Pedro dirigia a esmo, refletindo como poderia ter morrido. Suicídio não era uma alternativa. Pedro era um homem bom, e como todo homem bom, religioso. Condenava incisivamente o suicídio, o aborto e o assassinato. Afinal, a bíblia diz “não matarás”. Acaso, não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Nem fornicários, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbedos, nem maldizentes, nem roubadores…

Decidiu então que se a providência divina não o encontrou no trabalho e nem na casa da mãe, deveria começar a procurar em lugares em que, na teoria, nunca esteve. Quando teve a referida ideia, se encontrava guiando pela Avenida Paulista e um grande museu surgiu em sua frente. Resolveu entrar e averiguar.

Na bilheteria, foi informado que justamente às terças-feiras o museu não cobrava entrada. E, apesar de morto, Pedro se sentiu com muita sorte, pois o preço usual era de 70 reais – uma quantia absurda para ficar zanzando por um galpão enorme, vendo pinturas velhas. Assim que pisou na galeria, se deu conta de que, provavelmente, nunca havia estado neste e em nenhum outro museu em sua vida. Talvez apenas quando criança, em alguma excursão escolar, mas que deve ter odiado tanto que bloqueou a memória.

Olhou ao redor e entre as diversas pessoas de todos os tipos, raças, credos e cores, vestidas das mais diversas maneiras, mas todos apreciando os quadros e esculturas em silêncio e atenção, avistou a monitora da sala.

Olá, bom dia. A senhora sabe me informar se aconteceu alguma coisa aqui, ontem?

Bom dia, senhor. Ontem nós tivemos uma palestra sobre arte urbana queer e feminista, e também estamos com uma exposição sobre o Paul Gauguin e sua relação com os indígenas, no primeiro andar.

Paul o quê?

Gauguin. Sabe? Ele estava com o Van Gogh no dia em que ele surtou e cortou a própria orelha…

Pedro ficou alguns segundos com a boca entreaberta, encarando a monitora.

Na verdade eu gostaria de saber se aconteceu algo comigo, aqui no museu.

Como é, senhor?

Comigo. Se aconteceu algo comigo.

Aqui,nunca aconteceu nada com o senhor.

Agradeceu e começou caminhar a esmo pela galeria. De cara lhe chamou a atenção alguns quadros muito grandes, com paisagens ultra-realistas, em alguns deles, algo como o sertão nordestino, vistos de muito longe, sempre com o céu tomando mais da metade das obras e a terra na parte inferior, com suas árvores, rios, casas e pessoas. Tudo nos mínimos e exuberantes detalhes, em cores vivíssimas. Por um breve momento foi tomado por uma sensação estranha. Como se uma náusea repentina pairasse sobre ele. Em um dos quadros, intitulado Paisagem em Pernambuco com casa-grande, um casarão se destaca ao lado direito da pintura, cercada pela vegetação exuberante, e na parte inferior central, um grupo de negros, provavelmente trabalhadores escravizados, parecem dançar e se divertir. Pedro fitou os negros dançantes e a náusea parecia aumentar a cada segundo. Afinal, eles não deviam estar trabalhando?

Na parte traseira da obra encontrou o nome do artista. Frans Post. Um holandês havia pintado essa paisagem incrível e esses negros festeiros em 1665. Que confusão! Resolveu seguir em frente. Alguns passos adiante e outra pintura fez com que sua náusea se transfigurasse em repulsa. Um quadro onde um menino amarelado muito mal feito, trajando um bonezinho preto com detalhes em laranja, e um roupão azul, está sentado ou tentando se equilibrar sobre uma cadeira, diante de um fundo laranja extremamente gritante e de mal gosto. A expressão amarela esverdeada do garoto, parecendo um doente enjoado, lhe causava aversão instantânea. Mas o pior não era o tema em si, e sim a execução. Um trabalho tosco e primário, que qualquer criança com retardo mental e instrução artística nula, conseguiria realizar. Procurou o nome do pseudo-artista. Vincent van Gogh. O cara da orelha! Estava explicado por quê alguém se torturaria daquela forma. Vejam só, também holandês. O que estaria acontecendo com as pessoas daquele país?

Atordoado, caminhou por entre algumas pinturas abstratas que lhe fizeram enjoar e uma golfada de vômito subiu por sua garganta ao dar de encontro com tamanha obscenidade. Inúmeras manchas de cores variadas se transpondo, atravessadas por traços, curvas e todo tipo de forma indefinível. Era como presenciar um atropelamento. Apertou o passo, tapando a boca com a mão, tentando impedir que o vômito explodisse em direção às pseudo-obras de arte, até se deparar com aquilo! Aquela cena gigantesca de quase dois metrôs de altura e largura, onde um grupo de seres parecidos com zumbis retirantes nordestinos, talvez uma família, quatro adultos e cinco crianças, todos esqueléticos, repugnantes, trajando trapos, chapéus de palha e trouxas de roupas, lhe encaravam sobre uma paisagem seca e sem vida, rodeados por urubus. Os semblantes tristes, famélicos, um bebê envolto a trapos, costelas aparentes, uma barriga cheia de vermes, enorme, contrastando com as magrezas, um desespero no olhar que se dirigia diretamente a ele. Como se a culpa fosse dele. Ele que era justo. Ele que sempre pagou suas contas em dia. Que não pedia nada a ninguém. Que era temente a Deus. Ele que estava morto.

O vômito jorrou por toda a obra e o chão do museu. Uma senhora de idade que passava pelo local gritou o nome do Senhor e caiu sobre a escultura de uma jovem bailarina com os braços cruzados atrás das costas e o rosto levantado, como que alheia a desgraça que ocorria ao seu lado. A bailarina tombou ilesa, assim como a senhora. Uma dúzia de funcionários rapidamente isolaram o local, afastando curiosos que faziam vídeos e fotos com seus celulares. Em questão de minutos, a cena de Pedro sendo levado pelos seguranças, junto à pintura de Cândido Portinari coberta do que pareciam ser restos de um bife à rolê envolto em uma gosma preta esverdeada, tomava a internet e as redes sociais dos principais veículos de comunicação do país.

Após receber atendimento médico da equipe do museu, e terem verificado que as causas do incidente não foram deliberadas, os contatos e documentos de Pedro foram anotados e ele foi devidamente liberado.

Nunca em sua vida imaginaria passar por tamanho constrangimento. Muito menos em sua morte. O que faltava agora? Onde mais poderia continuar a investigação da causa e local de seu óbito? Pensou em mais lugares dos quais nunca pisou e que algo violento pudesse ter acontecido. Deu a partida em seu carro e saiu pela avenida, iluminado pelo lusco-fusco que fazia com que as manchas de vômito em sua camisa refletissem no para-brisa do Uno Mille. Algumas quadras a seguir, virou a direita entrando na Rua Augusta, sentido centro.

A pluralidade de pessoas transitando por uma das regiões mais boemias da cidade foi a primeira coisa que saltou aos olhos de Pedro. Mendigos se misturavam a jovens de roupas caras, empresários bebendo em mesas próximas a prostitutas, pessoas efusivas e perdidas em conversas animadas, entrando e saindo de cinemas, salões de cabelo que mais pareciam parques de diversão, ambulantes vendendo livros em bancas improvisadas e também pelo chão, jovens cruzando as ruas entre os carros com skates e bicicletas, hamburguerias, butecos e restaurantes dos mais caros aos mais humildes, gente de todas as idades, todas as cores, todos os sexos… Tudo misturado. Pessoas rindo, pessoas chorando, pessoas falando alto. Será que foi aqui? Parecia um lugar onde qualquer coisa poderia acontecer.

Enquanto a noite caía, parou o carro na primeira travessa que conseguiu. Ainda transtornado pela tragédia no museu, camisa empapada de vômito, se aproximou de um grupo que bebia e proseava em uma mesa de buteco na calçada, se abaixou próximo a uma garota loira coberta de tatuagens e falou com nervosismo.

Você sabe se aconteceu alguma coisa comigo nesse lugar?

Ela deu um gole no copo de cerveja e, com seriedade, encarou Pedro por alguns segundos. Todo o grupo desabou a rir copiosamente. Era como um pesadelo. Lentamente se afastou e seguiu descendo a rua, desnorteado. Tropeçou em um mendigo que estava deitado na calçada e quase caiu no colo de uma travesti que subia a rua.

Você está bem, meu amor? Precisa de ajuda?

Eu preciso saber! Aconteceu algo comigo?

Vou te contar, que lugar pra juntar gente doida esse aqui! Se cuida, vai pra casa descansar.

Continuou descendo a rua, atravessando o caminho pela turba infinita de seres humanos que teimavam em não parar de surgir. Em bandos, solitários, com roupas provocativas e obscenas. Eis que no meio de todo esse caos, o esplendor.  Um rapaz vestindo calça e camisa socais, engravatado, sapatos lustrosos refletindo as luzes de néon dos prostítulos e uma bíblia em mãos, pregava arduamente aos transeuntes.

…pois o demônio é ardiloso, irmão! Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo? Não profane então a morada do Senhor! Essa vida de vícios, mulheres, bebidas, drogas… Isso tudo é passageiro. Mas o Reino dos Céus, esse é para sempre. Esse é eterno!

Apesar do pastor agir de forma enérgica e performática, as pessoas pareciam não perceber sua presença. Mas Pedro parou em frente ao homem. Seu rosto projetava o desespero.

Ainda dá tempo, irmão. Basta se arrepender!

Pastor, eu preciso de ajuda.

Olhe pra você, irmão. Imundo, cercado pelo pecado. Tu és a própria figura da morte!

Mas você não pode se esquecer, que ainda há tempo!

Eu preciso saber, pastor. Algo aconteceu comigo?

Nada aconteceu com você, irmão! Nada! Pois aos olhos de Deus, nosso Pai Todo Poderoso, isso não é nada!

Um forte impacto nas costas fez Pedro perder o equilíbrio e avançar sobre o pastor. Levantou-se coberto de um líquido grudento de alguma bebida, da qual sobrou apenas o copo, na mão do homem extremamente gordo que o empurrou. Desculpas proferidas, o homem nem esperou a resposta de Pedro para continuar descendo a rua dando risadas escandalosas com os amigos. A noite quente estava tomada por luzes coloridas e pessoas sedentas por uma bebida gelada. Uma loja em específico chamou sua atenção, pela fachada chamativa com uma grande vitrine de vidro que servia como expositor para diversos produtos eróticos.

Parado em frente a loja, Pedro esquadrinhou lentamente tudo o que havia exposto na vitrine. Diversos tipos de pênis, com formatos, tamanhos e cores variados. Manequins femininos trajavam lingeries sensuais, com cintas-liga, saltos altos, rendas e tecidos de ceda, muito finos, sempre nas cores vermelho e preto. Botas pretas enormes, máscaras e couro com zíperes, chicotes e acessórios diversos espalhados ao redor. Mas o que mais prendeu sua atenção foi sua própria imagem, refletida em grandes pedaços de espelhos quebrados colados juntos, formando um mosaico. Pela primeira vez na vida, se viu daquela forma. Deformado pelos pedaços de vidro, sujo, despenteado, com as luzes roxas e vermelhas do néon que dava nome a loja colorindo sua expressão de espanto. Por trás de Pedro, incontáveis vultos do vai e vem. É assim que um morto se parece?

Entre o mar polifônico um som começou a se destacar. A voz de um homem em meio a muitas vozes. Entre os sons das músicas que soavam dos bares e dos carros que passavam lentamente, o barulho das pessoas e da cidade, uma frase soou nítida.

É aqui onde as coisas acontecem, meu amigo!

Pedro encontrou o dono da frase, mais abaixo pela Rua Augusta, vestindo roupa social de manga comprida, cabelo raspado e um dente de ouro que brilhava em sua boca. Com gracejos e promessas de diversão, o homem convidava os transeuntes à entrar em um dos muitos prostíbulos da região.

Bora, amigo? Tomar um drink por conta da casa?

Hesitou por algum tempo, vendo a porta vermelha que dava para um corredor escuro com uma escada ao fundo.

Vâmo lá, amigo, é aqui que as coisa acontecem!

Como que despertado de um transe, Pedro atravessou a porta e subiu as escadas. Sentia um frio na barriga e certo nervosismo, mas não entendia o porquê. O ambiente era muito escuro, iluminado por algumas luzes de led posicionadas sob o balcão do bar e nos cantos das paredes, que também eram cobertas por algo como um mosaico de pedaços de vidro. Sua cabeça formigava. Alguma mulher com uma voz muito aguda cantava em inglês que as garotas queriam apenas se divertir, em volume ensurdecedor nas caixas de som. A casa estava quase vazia, com exceção do vulto de um homem que conversava com uma garota em uma mesinha afastada, e um japonês bêbado super animado, que batia palmas e colocava dinheiro na calcinha de outra menina que dançava sobre uma plataforma no centro do lugar. Sentia-se como em um pesadelo, apesar de nunca ter visto algo do tipo nem em seus sonhos mais bizarros.

Sentou-se encostado ao balcão do bar e continuou observando a dança. Ela era morena, com cabelos longos, quadris largos, peitos fartos e naturais que faziam movimentos hipnóticos enquanto dançava sensualmente, trajando apenas aquela calcinha vermelha. O japonês aplaudia a cena com uma enorme fileira de dentes tomando metade da sua cara.

E aí, campeão. Pra usufruir do seu drink gratuito, você precisa comprar mais um. Vai de quê?

Fragmentos do barman multiplicavam-se por entre os zilhões de pedaços de espelhos que formavam as paredes, misturados a partes do ambiente, das pessoas e do bar. Tudo sob o efeito estroboscópico das luzes de led.

Pode ser… uma cerveja?

Sem perguntar que marca ele preferia, o barman abriu uma pequena garrafa verde e a colocou em sua frente. Ficou alguns segundos parados observando a garrafa enquanto a mulher de voz esganiçada que só queria se divertir dava lugar a uma música com uma atmosfera mais densa, e logo, outra mulher, dessa vez com uma voz marcante e potente, reclamava ter morrido cem vezes após seu homem ter lhe abandonado, lhe dizendo adeus apenas com palavras e que ela estava de volta à escuridão. Foi quando uma mão grande e quente segurou sua coxa direita.

Oi, bonitão. Posso te acompanhar?

Aquele sorriso enorme, envolto a um batom vermelho escuro, nunca mais sairia de sua memória. Ela parecia ainda maior ao seu lado do que quando estava dançando. A morena sorriu e acariciou sua perna. Não lembrava a última vez que havia tido contato físico com um mulher, desde que Carolina tinha ido embora há 3 anos. Mas nada na Carolina, pequena, contida, neurótica, sempre com muita roupa e pouca disposição, se parecia com quem lhe dirigia a palavra enquanto o apalpava.

Pode ser.

Que tal você me pagar um drink? Tem um por conta da casa, né?

Pode ser.

Logo o barman colocou o copo com um líquido vermelho sobre a mesa e enfiou um canudo dentro. Ela mexeu a bebida com o canudo e deu um gole. Na plataforma dançava agora uma garota pequena e gorda, de cabelos curtos loiros, enquanto o japonês continuava a sorrir, aplaudir e por dinheiro na calcinha. Pedro evitava encarar a morena, olhando para o ambiente respirando com dificuldade, enquanto tudo parecia se espalhar de forma distorcida pelos espelhos nas paredes quando ela aproximou a boca de seu ouvido.

Que tal a gente subir pro quarto e fazer uma putaria gostosa?

Foi como se seu coração parasse por alguns segundos. Passou a inspirar e expirar fundo e lentamente. Uma gota de suor frio escorreu pelas suas têmporas.

Eu só vim aqui porque preciso descobrir uma coisa.

Diga, meu bem.

Eu preciso saber se aconteceu algo comigo.

Pelo seu estado, parece que aconteceu muita coisa com você hoje.

Encarou-a com uma expressão de assombro que a fez retroceder alguns passos, assustada. Ele próprio não poderia estar mais amedrontado. A garrafa verde se espatifou no chão sem ao menos ter dado um gole. Cacos de vidro e cerveja voaram por todo o local. Pedro levantou tremendo e desnorteado, o barman gritou alguma coisa incompreensível, a mulher também começou a proferir palavras, mas era um caos sonoro e visual tão grande que a única ação possível foi correr. Desceu as escadas quase caindo pelos degraus e quando tentou cruzar a porta, foi pego pelo homem que o convidou a entrar.

Tá querendo fugir sem pagar, malandro?

O soco que acertou seu estômago foi tão forte que caiu apagado por um momento. Acordou sendo estapeado no rosto.

Vai maluco, cadê a grana das bebidas?

Tirou a carteira do bolso traseiro da calça, puxou alguma quantia de dinheiro, sem conseguir ver exatamente quanto, e entregou ao gorila que lhe agredia. Cambaleou para fora, finalmente. Sentou na sarjeta e cuspiu o sangue de sua boca enquanto um exército de pessoas cruzavam a rua nas duas direções e por todos os lados, mas era como se ninguém o enxergasse. A rua continuava emanando uma pluralidade de sons, música, vozes, luzes e sombras. Ao ver sua imagem refletida sobre a pequena poça de sangue no chão, a náusea que intermitentemente vinha dando as caras ao longo do dia, instantaneamente se dissipou, dando lugar a uma sensação que nunca havia sentido. Foi como se por um momento, não sentisse mais o peso. A dor da porrada, da boca rasgada, de tudo que passou hoje e também de tudo que nunca passou. Se levantou com alguma dificuldade e cambaleou pela calçada sobre um grupo que o empurrou para o meio da rua. Se recompôs e seguiu subindo, caminhando entre os carros que desciam, sentindo no rosto o melhor vento que havia experienciado em toda sua existência.

Abriu a porta do carro e ficou sentado ao volante, observando a movimentação. Um fio de sangue escorria pela boca e o sentimento de plenitude começava a se dissipar. Deu a partida e seguiu pela noite, sentido a zona leste de São Paulo, por uma cidade sem trânsito. Chegou em seu apartamento e fez o ritual usual, tirou os sapatos e os colocou no lado esquerdo da sapateira que fica no corredor de entrada; ligou a tv em qualquer canal para ter companhia; acendeu as luzes da sala; da cozinha; do corredor; colocou as roupas sujas no cesto e entrou no banho. Neste momento o desconforto usual e uma leve náusea já estavam de volta. Preparou um frango com arroz congelado em seu micro-ondas; sentou no lado direito do sofá; posicionou o suco de laranja no suporte lateral e colocou Forrest Gump pela trigésima quarta vez. Nada como seu filme favorito para poder relaxar e se preparar para mais um dia de trabalho…


Fernando Rick é um multiartista de São Paulo e este é seu primeiro conto. Influenciado pelo absurdismo, a crítica ao conservadorismo e na filosofia existencialista, nasce este conto com elementos kafkianos que trazem uma breve reflexão sobre a rotina e o contato com o novo.

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