FABRÍCIO PINHEIRO – Barbearia Arapixuna [conto]
FABRÍCIO PINHEIRO – Barbearia Arapixuna [conto]

FABRÍCIO PINHEIRO – Barbearia Arapixuna [conto]

Costumava ir a uma barbearia na região do Comércio da cidade chamada Barbearia Arapixuna. Tinha tudo que o empreendimento suscita, cortes de cabelo, barbeiros lamentáveis, revistas de mulher pelada misturadas as da Manchete, assuntos escabrosos, clientes desgostosos do corte e da vida, uma brea insalubre e testosterona estremecida. Além disso, o estabelecimento escondia em seus fundos – depois de uma porta que sustentava uma plaquinha escrito “depósito” – um negócio paralelo, dezenas de mesas de bilhar davam vida a uma jogatina ininterrupta que poderia chegar a apostas altíssimas, ficava ao critério do envolvimento e cacife dos adversários, tudo administrado pelo Ninja, barbeiro questionável, um apostador perspicaz e um cara gente boa.

A clientela era formada principalmente por velhos bigodudos de cara inchada, que viviam contando vantagem uns sobre os outros, geralmente já calibrados, e de índole e negócios um tanto curiosos. Um deles era o Seu Dão, um chinês dono de uma lanchonete engordurada que servia basicamente caldo de frango, esses expostos ainda devidamente vivos em engradados que formavam um paredão na calçada. Quando virava dias na Arapixuna, mandava buscar quentinhas de caldo de frango para todos, assim, obviamente, como já pagou dívidas e cortes de cabelo com o mesmo. E como não deveria deixar de ser, Seu Dão também mantinha alguns negócios escusos, além o de degolar frangos.

Ele me recebeu na porta da barbearia, me segurou pelo braço e me levou às pressas para os fundos. O lugar estava meia-boca, normal para uma terça às duas da tarde, um eco de tacada se ouvia aqui e ali, mas o cheiro de cigarro e cerveja velha exalava por todo canto. Seu Dão resmungava e suava mais que o normal, de repente parou e apontou para uma mesa de bilhar. Encontrei Duranz deitado sobre a mesa em posição de defunto. Não contive a gargalhada, o chinês abriu os braços indignado, me xingando, arrependido da ajuda que solicitara; Duranz abria um dos olhos tentando segurar o riso.

– Que fuleragem é essa que acontecendo, Seu Dão? – eu estava curioso.

– Esse safado do Duranz perdeu a aposta e quer me pagar com caldo de frango! – Seu Dão bufava pelo canto da boca.

– Que porra é essa, Duranz? – me virei para ele as gargalhadas.

– Ou é isso, ou a minha vida. Eu só estou adiantando o velório. – respondeu Duranz em sua posição defuntal.

Duranz trabalhava comigo em uma produtora de vídeos que produzia de tudo, desde que pagassem e não tivesse grandes complicações; parecia outro negócio clandestino. Nosso chefe, o Senhor Dourado, também era metido com a turma da Arapixuna, e vira e mexe desaparecia fugindo das dívidas, como era o caso nesse dia específico. Não é preciso ser um gênio para concluir que os salários atrasados aconteciam com frequência. Eu e Duranz éramos os únicos funcionários do lugar, fazendo as vias de algo parecido com redatores e jornalistas, criávamos roteiros, slogans, cartilhas, tudo com qualidade questionável, por isso também não entrávamos em muito conflito com os atrasos do Senhor Dourado. Logo, fazer uma renda extra se fazia necessário e o Duranz tentava fazer isso através das apostas nos jogos de bilhar, a tentativa desandava porque ele não tinha o menor gingado para a coisa, jogava bilhar pessimamente. Além disso, costumava fazer alguns serviços extracampo para os ilustres integrantes do lugar, solicitavam os serviços de Duranz quando precisavam descobrir algum podre dos figurões com que mantinham seus negócios paralelos, para assim chantageá-los, assim como serviços mais pessoais, como apurar – usava o termo para manter o profissionalismo – traições conjugais; o faro investigador de Duranz não era dos melhores, mas conseguia se sair melhor que no bilhar.

Seu Dão já havia usado dos serviços de Duranz algumas vezes, assim como o próprio Ninja, como o Senhor Dourado, algumas vezes até uns contra os outros, ou seja, o Duranz sabia de coisas escabrosas de quase todos que nem os mesmos sonhavam existir, se ele desse um deslize a coisa poderia ficar feia para o seu lado. O pior só não acontecia porque Duranz era um sujeito que o próprio não se levava a sério, o serviço valia a pena pelo baixo custo benefício e total descomprometimento dele, e tinha duas armas infalíveis, o desentendimento e se fazer despercebido – quando não estava tentando dar calotes em apostas de jogos.

O chinês começou a ficar impaciente com o velório prematuro de Duranz e mandou chamar o Ninja para botar ordem no lugar e juízo na cabeça do “morto”. Esse tipo de encenação no lugar que frequentávamos, com os sujeitos que convivíamos – assustadores e hilários no mesmo toque –, era algo rotineiro. Certa vez o Bigode, dono da Garapeira Ypiranga, inventou de levar para a jogatina a filha que retornara de anos estudando na capital. Orgulhoso da formosa cria recém-formada em medicina, a apresentava e a anunciava como médica para todos que chegavam. Logo a velharada caiu em cima, formou-se uma fila de enfermos para serem atendidos pela doutora, reclamando dores nunca antes reclamadas, e lançando galanteios sem demostrar o menor pudor em relação ao pai.

Bigode encasquetou com o Ninja, que ao ser atendido afirmou estar sofrendo do coração desde quando chegara à barbearia pela manhã, em seguida colocou a mão da médica em seu peito. Porra, uma cafajestada dessas é de se dar o devido valor! O pai enlouqueceu, pegou um taco de bilhar para acertar Ninja que corria por entre as mesas o ameaçando com uma navalha. Ao sentir a desvantagem, Bigode deixou o taco cair, tombou em direção a filha apertando o peito, simulando um enfarte desconfiado por todos, que mesmo assim foram acudi-lo, inclusive Ninja, e o entrevero se encerrou com a filha levando o pai para a casa.

Nos dias seguintes, todas as vezes que jogavam um contra o outro, Ninja perdia, deixando o Bigode desconfiado. Também foi o único cliente a qual Ninja não cometia mais erros de cortes. Todos já haviam sido vítimas de sua navalha na hora de acertar o cabelo, coisa que acontecia com frequência. Dizem que o Bigode ficou tão incomodado com o pescoço ileso as navalhadas, que certo dia, depois de mais um corte irretocável, exigiu que Ninja o cortasse, negado o pedido, e com a desconfiança o dominando, avançou em cima do barbeiro, segurou a mão com a navalha tentando a todo custo ser cortado. Bigode foi contido pelos outros clientes e colocado para rua, a cara vermelha, o cabelo um primor, o pescoço intacto, completamente chateado.

Nesses tipos de lugares as rivalidades são comuns. Ninguém presta, mas também ninguém vive sem. Apesar dos desentendimentos, Ninja era o proprietário, além da barbearia e das mesas de bilhar, também gerenciava todos os tipos de apostas que envolvessem jogos um tanto inusitados, desde porrinha ao truco – modalidades que rendiam uma boa grana na região do Mascote, reduto de aposentados endinheirados que faziam desses jogos uma prática particular para exercitarem seu enfado e seu vício em apostas. Quando moleque, Ninja vivia de pequenos furtos pelo Mercadão 2000 até ser adotado pelo Doutor Ramalho, um portuga dono da maior rede de supermercado da cidade, o D.R., foi dele que ganhou a barbearia e herdou o negócio das apostas, era o único que tinha jeito para a coisa, os filhos de sangue do Doutor Ramalho assumiram os empreendimentos legais da família. Depois que Ninja se estabeleceu nos negócios – foi de Ninja a ideia das mesas de bilhar e de explorar aposentado – Doutor Ramalho achou ser a hora de introduzi-lo no seu negócio mais rentável, o bingo e o jogo do bicho. Ninja se saiu melhor que a encomenda, isso lhe rendeu grandes aliados, desde políticos à estivadores, logo, mantinha-se com ele alguns limites, um respeito obrigatório; todas as pendências entre os membros da Barbearia Arapixuna que não conseguiam ser resolvidas pelas vias normais eram levadas até Ninja para que ele desse a palavra final, sem contestação, sempre com a voz mansa, sem alteração, o que dava uma impressão perturbadora quando ele chantageava ou ameaçava alguém.

Para resolver a pendencia entre Seu Dão e Duranz, ele apareceu tranquilamente chupando um chopinho de muruci, a navalha avolumando o bolso esquerdo. Reclamava do calor.

– Alguém quer? Vai lá na frente e pede pro Mucura anotar que depois acerto com ele – Mucura era o moleque que passava pela barbearia todo final de tarde vendendo chopinho e picolé.

Depois que Ninja ofereceu, mais da metade das mesas de bilhar esvaziaram – desconfiei imediatamente. Seu Dão já havia desabotoado a camisa expondo a barriga arredondada lisa e maior que o próprio corpo, suava fazendo jus ao verão amazônico, andava de uma ponta a outra da mesa de bilhar, jurando baixo retaliações à Duranz caso permanecesse com aquela história de caldo de frango.

– Calma lá, Seu Seu Dão – a incorporação do “Seu” como nome próprio de Seu Dão dava nessas repetições, que Ninja usava para debochar – ninguém precisa entrar em desavenças à toa antes do necessário. uma brea do caralho e vocês estão aí nessa valsa chata da porra. Me erra, porra!

– Porra, primo, caldo de frango vem, caldo de frango vai. É a lei da granja, porra! – Duranz ressuscitava falando diretamente para Seu Dão.

– Quer virar miúdo, Duranz? – ameaçou Seu Dão com seu jeito atarracado e curto.

– Vocês dois! Sem perturbação! Sampaio! – eu estava virando o resto de cerveja que sobrara na mesa dos rivais quando Ninja chamou pelo meu nome – Tu não apostas porra nenhuma aqui, resolve essa merda aí. Traz um divã, sei lá… Leva pra meditar, tomar uma garapa!

Ninja se sentou em uma mesa de canto e ficou de lá observando. Mucura apareceu para acertar a conta, cumprimentou a todos, estava sorridente, a venda parecia ter sido boa. Quando chegou em Ninja se assustou com o bolo de dinheiro que ele tirou do bolso da camisa, ganhou uma generosa gorjeta e algumas fichas para jogar, foi até uma mesa, largou o isopor no chão, abriu a gaveta do bilhar e foi sacando as bolas desafiando qualquer um que lhe desse atenção.

Mucura era um moleque de 9 anos baixote, pouco maior em altura que a mesa de bilhar, no início até jogavam apostando contra ele como se fosse igual a qualquer um lá dentro, mas sempre que perdia desembestava em uma choradeira que não comovia em nada aquele tipo de gente, pelo contrário, ficavam impacientes com os modos do garoto, alguns até o esbofeteavam para que se endireitasse, alegavam jogar de igual para “ajudar à calejar”, muitos se aproveitavam da oportunidade, mas todos levavam o dinheiro do garoto sem o menor remorso. Apesar do incomodo, a choradeira comoveu Ninja, sem antes vencer uma aposta contra o garoto na qual levou até mesmo seu isopor com todo o estoque do dia. Ficou sentado amolando a navalha enquanto o moleque suplicava aos berros que devolvesse seu único instrumento de trabalho – presente da clientela da Arapixuna –, quando se jogou ao chão como a criança que ainda era, Ninja se levantou, puxou o menino pela orelha e o levou até seu escritório. Mucura saiu de lá com a cara inchada, limpando as lágrimas, o isopor a tira colo, vendendo chopinho e picolé a todos.

Ouvi o menino me chamando, fazendo chacota, batendo o taco na mesa, me desafiando, mas o olhar que Ninja me lançava, me fazendo lembrar da incumbência que eu tinha, me fez negar o desafio. Mucura caiu na gargalhada, continuou a bater com o taco no tampo da mesa, me chamando de frouxo, miserável, e contava as notas de 2 reais que Ninja lhe dera. Duranz e Seu Dão riam a minha frente, pareciam amigos, não mais rivais de caldo de frango. As risadas foram diminuindo até se constrangerem, Seu Dão levantou o dedo no rosto de Duranz e a discursão recomeçou, me intrometi na conversa, arrastei pelo braço o dono da lanchonete até uma mesa.

– Porra, Seu D…

– Nem começa, menino. Isso aqui não é conversa pra ti. Vai tomar uns birinight, que é o melhor que tu fazes. Teu pai ficaria aliviado – não me deu nem a chance de começar a falar e se desembestou atrás de Duranz.

Meu pai e Seu Dão se conheciam desde os tempos de Banco, eram uma duplinha de bon vivant que estavam ali só para fazer uma graninha para financiarem suas gandaias. Vez e outra surgiam viagens as sextas-feiras depois do expediente para capital ou para o interior do interior que deixavam minha mãe muda pelos cantos da casa até a volta do marido. Organizavam festas no banco por qualquer motivo, certa vez fizeram uma festança pela aprovação no vestibular de um dos filhos dos colegas de trabalho, tudo patrocinado pelo dinheiro do Banco, todos participaram, até a chefia, que abraçava o calouro e o pai como se fosse parte da família.

Foi em uma dessas festas que conheci Seu Dão, se eu não me engano era em comemoração à Quaresma, regada a muito uísque, cerveja, salame, azeitona, empada, brigadeiro, esposas, amantes e Carlton. Ele me chamou até a rodinha onde contava histórias que faziam todos rirem – parecia um cara bem divertido – perguntou meu nome e se eu bebia, me estendeu o copo de cerveja para que eu desse um gole, dei uma bela golada tentando disfarçar a careta, todos comemoraram, Seu Dão caiu na risada, tirou algumas moedas da carteira e me deu, saí gritando pelo salão correndo até onde as crianças brincavam: – “Eu bêbado!”. Eu devia ter uns 7 ou 8.

Além disso, meu pai e Seu Dão eram os mais desenrolados do seu ambiente de trabalho. Conheciam de tudo e todos na cidade, sabiam caminhos menos tortuosos para se conseguir as coisas. Toda vez que um colega estava com algum problema que não conseguia resolver, concertar um carro quebrado, consulta para o filho menor, um contador, um gás mais em conta, um imposto de renda mais à la vontê, um pedreiro, enviar mercadoria para capital acima do peso e abaixo do custo, um arquiteto, um arqueólogo corrupto, um advogado, um encanador, um borracheiro, e por aí vai, sempre tinham a quem indicar. Seu Dão logo viu a oportunidade de negócio, meu pai fazia pela camaradagem, se preocupava com os finais de semana. Do dia para noite Seu Dão começou a agenciar quase todo mundo no banco no quesito “ com um probleminha”, não aceitava dinheiro em troca, mesmo que lhe oferecessem, dizia ser um favor, mas por traz sua porcentagem estava acordada junto aos prestadores de serviço para quem ele indicava seus colegas de Banco.

O cara virou quase um prefeito, mais respeitado que o próprio chefe. Não demorou muito até lhe pedirem dinheiro emprestado, aí veio o pulo do gato, a independência nos negócios escusos. Em alguns meses largou o Banco e comprou a lanchonete, tendo meu pai como frequentador assíduo, a partir daí vem vivendo de caldo de frango e do desespero alheio. O negócio ficou tão profissa, que Seu Dão não dispensou nem meu pai quando esse lhe emprestou dinheiro e atrasou o pagamento. As visitas de motoqueiros aterrorizantes em casa se tornaram constantes, as idas ao banco de malacos tentando empréstimo no mesmo valor que meu pai devia, os caras estranhos na esquina da escola na hora da saída. A dívida foi paga a muito custo, e a amizade estava arruinada. Talvez Seu Dão não se arrependesse, mas sentia, ainda mais depois que meu pai morreu.

Fui para mais uma tentativa e puxei Seu Dão de canto novamente.

– Porra Seu Dão, tu sabes que o Duranz é maluco, dá uma forra, bora chegar em um acordo.

– Eu virei hospício agora, Sampaio? – abria os braços e estufava o peito me encarando.

– De quanto foi a aposta?

– 2 pila!

Até eu achei demais 2 mil contos em caldo de frango. Eu sabia que Duranz não tinha essa quantia dando bobeira e também sabia de onde viriam os caldos, então resolvi apelar para o lado sentimental de Seu Dão, se é que ainda existia algum resquício.

– Veja bem Seu Dão, até eu acho muita coisa tudo isso de caldo de frango, se fosse pelo menos de legumes pra dar uma balanceada – tentei descontrair em um momento errado, até arrisquei o sorriso mais simpático que eu conseguia.

Ele me lançou um olhar de poucos amigos.

– Foi mal – me desculpei, só o que me faltava era o Seu Dão bronqueado comigo por conta de uma piadinha xexelenta de legumes – Tu foste amigo do meu pai, tenta relev…

– Como é que é Sampaio? Deu pra ressuscitar gente agora, garoto? – me cortou mais uma vez.

Fomos interrompidos por uma falação que vinha da barbearia. Aplausos se confundiam aos gritos eufóricos. Quando a comitiva se aproximou do salão de jogos pude escutar um bregoso que saía de um radinho de pilha. Era o Velho Morel. Ele e Ninja disputavam cabeça por cabeça o respeito dos membros da Barbearia Arapixuna, cada trambique, cada chantagem, cada molhada de mão, cada ameaça, cada aliança, era disputada palmo a palmo entre os dois. Oficialmente, Ninja era quem encabeçava os negócios, mas todos tinham pelo Velho Morel um respeito genuíno e um medo abissal em contrariá-lo. Como o nome já deixa subentendido, era o mais velho de todos, era dono do Cinerama, o único cinema da cidade onde em sua maioria exibia filmes antigos, os novos, quando exibidos, eram com 3, 4 meses de atraso; para todo lugar que ia levava a tiracolo um radinho de pilha sintonizado na Rádio Guarany 100,3 FM, com o bolso da calça cheio de pilhas.

Morel fez parte de grande parte do desenvolvimento da cidade, é difícil dizer um empreendimento que não tivesse sua mão. Chegou por essas bandas durante a corrida do ouro, época em que conheceu Bartolomeu Sarraf, líder da colônia de arigós que dominavam a maioria do comércio local e com quem Morel tinha uma aliança próspera e duradoura. No garimpo, O Velho bamburrou uma meia dúzia de vezes, coisa rara, depois de juntar o que ele achava necessário, foi para cidade e convidou Bartolomeu Sarraf para ir junto. A proposta inicial era, ele conseguiria os terrenos, os acordos e daria conta de qualquer burocracia, para abrirem diversas lojas onde venderiam cacarecos abaixo custo, enquanto Sarraf entraria com a força de trabalho dele e dos parentes. O Comércio prosperou rapidamente, assim como o contrabando das mercadorias de quinta que vendiam, a lavagem de dinheiro, e a carteira de políticos parceiros. O Comércio ganhou um apelido, um nome extraoficial, passou a ser conhecido como Vila Arigó; Sarraf virou dono de sapatarias, assim mesmo no plural, junto com Morel dominaram ruas para alocar os pequenos negócios da colônia, os parentes mais próximos com lojas mais estabelecidas, principalmente de eletrodomésticos, dividiam os lucros com Sarraf; mas todos, sem exceção, dividiam com o Velho Morel. O cinema surgiu como uma forma do jovem Morel diminuir os questionamentos de onde vinha sua fortuna, o que não era um problema, já que a vista grossa era muito bem patrocinada por ele.

A Comitiva entrou no salão de jogos alvoroçada, Bartolomeu Sarraf e Bigode a acompanhavam, cada um segurava uma grande caixa de papelão, as colocaram em cima de uma das mesas de bilhar, o Velho Morel as abriu com ajuda de um canivete, lá estavam centenas de fitas VHS do filme Titanic – falsificadas, claramente, mas tudo de primeira mão, elas não tinham chegado nem mesmo nas locadoras de vídeo – e começou a distribuir para todos os apostadores que estavam de bobeira por ali, que recebiam festivos o brinde; Morel era esperto nesse quesito, transformou um dia qualquer em Natal antecipado, substituindo a ceia, o peru, com sua política de falsificados e circo comemoradíssima pelos apadrinhados.

Quem não se entusiasmou muito foi o Seu Dão. Bigode foi pessoalmente entregar o mimo a ele, que recebeu com um sorriso amarelo, mais falso que o próprio VHS. Acontece que o Seu Dão estava na bronca com Bigode desde quando ele se aliou ao Velho Morel. Na Barbearia Arapixuna, dizia-se que existiam 3 cabeças, Morel, Ninja e Seu Dão, mas Duranz, em uma das suas investigações paralelas, descobriu que de fato, por debaixo dos panos, só existiam duas, Morel e Ninja-Seu Dão, que se uniram para tentar fazer frente ao Velho Morel; um cuidou das cobranças das apostas do outro, o outro aumentou as taxas cobradas nos serviços que o um arrumava. O Bigode era a revelação em ascensão, não jurava fidelidade eterna a ninguém, apenas sazonalmente em negócios específicos; além de dono da Garapeira Ypiranga, comandava a AEFAQ (Associação de Empreendedores de Feiras, Arraial e Quermesses) desde quando ainda vendia cachorro-quente nas Festividades de Nossa Senhora da Conceição.

Os subornos e as taxas fortaleceram a Associação comandada por Bigode, criou a Garapeira que ficava na Praça da Matriz, onde acontecia a principal festividade da cidade, que durava semanas, onde os tais empreendedores disputavam até as vias de fato o direito a montar uma barraca. A Garapeira Ypiranga soava quase como um aviso – além de todos os despachos serem feitos por lá, pessoalmente por Bigode –, seus colegas de associação se estabeleciam na Praça apenas por semanas, dependendo do que lá acontecesse, dependendo da permissão do comandante, enquanto isso, Bigode era o único empreendedor que permanecia na Praça da Matriz o ano inteiro.

Na última eleição da Associação, Ninja e Seu Dão aliciaram de todas as formas Bigode para que aceitasse coligar com eles. Não que Bigode precisasse, as eleições eram apenas um protocolo, a questão era mais o fortalecimento do poder, no caso, o de Ninja e Seu Dão. Foi em choque que os dois assistiram o anúncio no auditório da Associação de que Bartolomeu Sarraf seria seu vice. Os dois permaneceram até o final da cerimônia, cada um sentado em um canto para não dar na vista a indignação, muito menos a aliança, enquanto isso, no fundo do auditório, o Velho Morel dava gargalhadas escutando seu radinho de pilha.

Seu Dão veio em minha direção com a cara mais enrugada que o normal, resmungando baixinho, a inconformidade com Bigode era tamanha que ele nem percebeu quando passou por Duranz que ria da situação, me olhando apontando com a boca na direção do chinês. Quando chegou, Seu Dão me jogou sua fita VHS falsificada do Titanic – quase a deixei cair –, escorou-se ao meu lado na mesa de bilhar e abotoou a camisa.

– Isso é uma palhaçada, Sampaio – visivelmente o ranço contra a tríade só aumentara desde a eleição – Essa presepada vai acabar, eles não perdem por esperar.

– Porra, Seu Dão, não vai fazer merda, bicho. E se fores, melhor nem começares a falar, me tira dessa – não é que eu fosse um cagão, eu só não estava disposto a me tornar cumplice dos caras, eu já tinha minha cota de problemas suficiente, o máximo que eu queria era saber das fofocas através do Duranz.

– Te acalma, Sampaio. Tu sabes por que o Jack não sobreviveu? Ele não é um suicida, muito menos um bom samaritano, ele não tirou nem doou, estás me entendendo. Sabes por que? Foi a Rose, cara. Aquela maldita porta dava pra eles dois e mais aquela bandinha lá – indignou-se.

– Como é que é? – a tese me interessou.

– Tu conheces a dona do Restaurante Estoril? – os olhos semicerrados miravam a algazarra da distribuição dos VHS.

– A neta do Velho Morel? Conheço, porra, vivia pra cima e pra baixo com a minha irmã.

– Pois é, eu sei – Seu Dão me deu dois tapas no rosto dando uma gargalhada sacana. – Tu fazes bem em se manter longe dessas merdas, Sampaio, teu pai ficaria aliviado.

– De novo essa história, Seu Dão, que papo é esse? Bora, me conta qual o papo com a Enne – esse era o nome da neta do Velho Morel, dona do Restaurante Estoril.

– Depois, Sampaio. Cadê o abestado do Duranz?

Por um breve momento eu havia esquecido da pendência do caldo do frango e saí desembestado atrás do Seu Dão. Avistamos Duranz jogando contra o pequeno Mucura, até eu desacreditei que ele tentaria tirar um trocado do garoto, o protegido do Ninja, ele deveria estar desesperado. Duranz não era um cara sem escrúpulos, ele apenas não acreditava que a humanidade precisava de tanto. Seu Dão apressou o passo comigo junto em seu encalço.

Duranz sentiu a direita armada de Seu Dão para lhe acertar quando levantou os braços e apontou para o garoto. Mucura arregalava os olhos segurando o choro abraçado ao taco. Sobre a mesa alguns chicletes e balas casavam a aposta. Seu Dão estagnou com o punho cerrado sobre os ombros, olhava constrangido para o garoto, baixou lentamente o braço, puxou a carteira, tirou algumas fichas de lá as depositando sobre a mesa e se retirou, foi até o Velho Morel e Bartolomeu Sarraf os cumprimentar.

Nessas horas sempre me vinha a consciência do lugar onde eu estava, das pessoas com quem eu estava lidando, eu poderia achar que me diferenciava de Duranz por não participar das apostas, das jogatinas, numa tentativa equivocada de manter o moral, a índole, a ficha criminal, limpa, mas eu não me diferenciava em nada dele. Estava envolvido até as ventas só por estar lá, por saber de muito, escutar confissões e não fazer nada a respeito, eu não era em nada melhor que Duranz, talvez fosse até pior, participando à espreita, na surdina, fingindo inocência, quando no fundo estávamos metidos na mesma enrascada. Pedi licença ao Mucura interrompendo o jogo, levei Duranz até o bar, pegamos uma cerveja e fomos nos sentar.

– O que está acontecendo, Duranz? Que maluquice é essa de caldo de frango? – perguntei sem servi a cerveja.

– Relaxa, Sampaio, ele vai aceitar. Vou fazer uma proposta irrecusável – Duranz servia a cerveja sem pressa.

– Duranz, pode parar, tu estás mais do que ligado que essa parada de Vito Corleone não dá em nada por aqui, o papo aqui é mais para Odorico Paraguaçu.

– É por isso mesmo, rapaz. A coisa é digna de horário nobre.

– Tem a ver com a Enne, não tem? – joguei a isca para tentar descobrir o que Seu Dão omitia, com certeza Duranz sabia de algo.

Duranz me olhou surpreso, mas com um sorriso satisfeito.

– Olha quem anda sabendo demais, rapaz. Seu Dão deu com as línguas nos dentes foi?

– Não. Me conta.

– Tá bem. Tu sabes que a neta não se dá com o Velho desde quando ela… – apontou para mim – Bem… Quando tua irmã e ela terminaram. Pois bem, eis que daí me brota uma aliança inesperada.

– Mentira!

– Humhum! – se empolgou Duranz – Seu Dão também fez uma proposta irrecusável, a vingança, tanto de um lado quanto de outro. Seu Dão e Enne são os mais novos melhores amigos da Barbearia Arapixuna e, claro, o Ninja também. Porra, tu não viste como o cardápio do Estoril agora? Agora tem até uma televisão de cachorro naquela bodega, sem falar nos caldos né.

– E quem mais sabe disso?

– Seu Dão, o Ninja, claro, e agora tu. Mas logo menos todo mundo vai saber, é só tu aguardares mais um pouco.

– E o que isso tem a ver com a aposta do caldo de frango – Duranz não parava de sorrir, arrumava a gola da camisa e fingia tossir – Não! Não! Não boto fé! – se levantou me deixando sozinho ruminando as implicações da surpresa.

Enne, a dona do Restaurante Estoril, participava dos negócios do avô desde muito cedo, era seu grande orgulho, tinha grande respeito de Sarraf e gerenciava uma parte importante do Comércio. Certo dia se apaixonou perdidamente por Laura, minha irmã, e as coisas começaram a degringolar. Laura era a única da família que tinha o tino apurado para o trambique. Até acho que gostou de Enne em algum momento, mas a aproximação foi por puro e inegável interesse. Extorquia a neta o quanto podia, neta que sempre voltava com saudade depois das ameaças. O avô, que desde o início soube quais as intenções de Laura, sempre se opôs ao envolvimento das duas; Enne, achando se tratar apenas de preconceito, entrou em brigas ferrenhas com o Velho Morel, até o relacionamento avô e neta se reduzir a encontros em festas de família.

Morel, na tentativa de proteger a neta, fez uma oferta à Laura, ofereceu um dos pontos mais rentáveis na Vila Arigó, aceita prontamente por minha irmã. Laura rompeu com Enne e se tornou a única estrangeira no negócio da colônia de arigós. Enne não perdoou a ex, muito menos o avô, a quem jurou vingança. Se tornou membra honorária da Barbearia Arapixuna – a contragosto do Velho Morel – onde ia apenas para acertar acordos.

Nesse dia, de repente todos se calaram dentro do salão, olhavam em direção a entrada, ouvia-se apenas o radinho de pilha do Velho Morel. Era Enne, encharcada de suor, tomando água de uma garrafa térmica, vestida com roupa de academia. Caminhou lentamente a teu seu avô, desligou o radinho de pilha e lhe pediu a benção. Seguiu por entre as mesas de bilhar encarando um a um, alguns até desviavam o olhar, procurava alguém. Parou em frente a um homem de pele pálida, olheiras profundas, a barba por fazer e tatuagens no pescoço, ele trazia uma cerveja e dois copos; os dois se encararam por alguns segundos, Enne colocou a mão na nuca do homem e lhe tascou um beijo, era Duranz. Ele serviu os copos, Enne levantou o seu e anunciou o casório, e como padrinhos Ninja e Seu Dão, os noivos brindaram e tomaram do copo de uma vez.

Todos acompanhavam estarrecidos ao anúncio, boquiabertos, dando incrédulos goles de cerveja. Procurei o Velho Morel curioso em saber se algum enfarte o acometia, engolia em seco e abria a boca como se quisesse dizer algo. Sarraf e Bigode não disfarçavam o espanto virando a cabeça para o chefe e para o casal. Seu Dão, completamente desconcertado, e Ninja, sem esconder a empolgação, foram os primeiros a darem parabéns a Duranz e Enne, pediram mais cerveja para comemorarem. Aos poucos todos foram parabenizar o casal, por último foi o Velho Morel e sua Comitiva. A aposta estava perdoada, a aliança anunciada e uma nova liderança nascia.

Enquanto todos se ocupavam com as comemorações e pensavam em suas próximas estratégias, e como eu também não tinha mais a incumbência de resolver o imbróglio entre Seu Dão e Duranz, uma vez que o caldo de frango parecia ter se tornado a moeda vigente, decidi deixar para trás aquele grupo estranho de velhos corruptos e gagás a qual meu amigo se integrava oficialmente, para ir até a Barbearia Arapixuna e finalmente conseguir um merecido corte de cabelo ileso as navalhadas.


Fabrício Pinheiro

Fabrício Pinheiro é paraense nascido em Óbidos, ainda pequeno foi com os pais para Santarém onde foi criado. Se mudou para capital paraense, Belém, onde fez universidade e se formou em Comunicação Social pela Universidade Federal do Pará. Depois de formado, começou a trabalhar como produtor de set no cinema nacional com a escrita ficando em segundo plano. Em 2017 se mudou para São Paulo e se dividiu entre duas paixões, o cinema e a literatura, essa última se fazendo valer, começando a publicar seus textos de forma independente.

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