ANTONIO SODRÉ – Tatá [conto]
ANTONIO SODRÉ – Tatá [conto]

ANTONIO SODRÉ – Tatá [conto]

Tatá atravessava a estrada lentamente. Para evitar um assassinato, José freou bruscamente sua caminhonete. Tatá saiu de vista. Seu José abriu a porta do motorista e saiu da caminhonete. Não tinha esmagado Tatá por meros centímetros. A tartaruga continuava a andar como se nada tivesse acontecido.

Seu José pegou a tartaruga, que encolheu sua cabeça e membros para dentro da sua casca de hexágonos de queratina. Não era uma tartaruga pequena, tinha uns trinta centímetros. “Esse bicho vai dar um bom presente para meu sobrinho”. Estava indo para a casa da irmã, Maria, mãe solteira de João, de oito anos. Chegou na casa da irmã buzinando freneticamente, como era de hábito. Júlia abriu o portão da garagem e Seu José estacionou sua caminhonete. Continuava a buzinar.

Mal pisou os pés no chão e João veio lhe dar um abraço. O sobrinho adorava o tio. Ali mesmo, na garagem, José falou que tinha uma surpresa. Tirou a tartaruga, ainda escondida no casco, do banco do passageiro e entregou à criança. Júlia olhou para Seu José com uma cara de reprovação. O menino saiu correndo com a tartaruga para colocá-la no chão do quintal atrás da casa.

Enquanto servia uma caneca de café para o irmão, Júlia disparou:

“José, não faça isso. Não se dá um bicho de presente para uma criança sem avisar. Eu nem sei cuidar dessa coisa. O menino já deve estar apegado, meu Deus!”

“Júlia, fique tranquila. Tartaruga é fácil de cuidar. A gente teve uma quando criança, não lembra? Acho que você era muito jovem quando a Juba morreu. Você se divertia com ela, colocando ela de barriga para cima no sol. Do que será que Juba morreu mesmo? Não lembro. É de boa, só colocar frutas e legumes para ela comer.”

“Se essa tartaruga me der trabalho eu vou enfiar ela na sua casa!”, disse Maria esboçando um sorriso. Amava o irmão e suas travessuras.

“Não é que ela vai sair correndo, né, Maria?”, falou José enquanto cutucava a irmã como se ainda fossem crianças.

”Tio, tio…ela não sai da casca?”, perguntou João trazendo a tartaruga para a cozinha.

“Daqui a pouco ela sai, rapaz. Ela está com medo, pois é casa nova. Tartaruga é um bicho desconfiado. Deixa ela no quintal sozinha um tempinho que ela acaba aparecendo. Qual nome vai dar para ela? “

“Ela?”, perguntou Júlia, “Como você sabe que é uma fêmea?”

“Sei lá, tem cara. E tem diferença entre macho e fêmea?”

“Tá bom, então vamos chamar ela de Tatá”, disse a mãe olhando para João, que aprovou o nome.

Tatá saiu da casca no fim do dia, para o alívio de João, que a observava fazia horas sentado na soleira da porta. Quando o menino chegou perto, ela se recolheu novamente.

“Ah, rapaz…não adianta esperar assim não… vai aos pouquinhos. Amanhã você tenta de novo.” João seguiu o conselho e foi brincar no computador.

Com o passar do tempo, Tatá se acostumou à sua nova casa. Não se enclausurava mais quando João vinha brincar com ela, a levantava e a balançava de um lado a outro, como se fosse uma tartaruga voadora. Quando Maria, deitada no sofá da sala, a colocava sobre a sua barriga, ela esticava sua cabeça. Gostava de carinho no pescoço. E assim a Tatá cativou a família.

Tatá era uma tartaruga peculiar. Tinha um enorme apetite sexual. Mostrou-se ser uma tartaruga macho. Quando via um objeto no chão não reprimia sua libido. Copulava com vasos, sapatos, chinelos, bichos de pelúcia, latas de refrigerante e garrafas — não importava se era de plástico ou vidro — entre outros objetos. Sua lascívia era incansável. Após chegar ao clímax, deixava a parceira inanimada lambuzada. Em se tratando de questões da carne, não era lerda. Quando via um potencial par romântico, corria que nem uma lebre para acasalar. Não pedia consentimento nem ligava para as preliminares.

A libido de Tatá causou problemas para Júlia. Primeiro, era ela que tinha que limpar objetos untados. Segundo, João, menino inocente, não entendia por que sua amiga Tatá gostava de ficar balançando agarrada a coisas inertes, grunhindo “ren…ren…ren” como uma porta giratória com rangido, que fazia o menino rir ao mesmo tempo que o confundia. João estava curioso. Maria explicou que Tatá estava apenas se divertindo. Arrependeu-se. João entrou numa fase de agenciador acidental, começando a colocar garrafas, copos e brinquedos no chão para a alegria de Tatá. Em êxtase, Tatá acabava fazendo uma sujeirada.

Um dia Maria retirou o harém de Tatá do chão e proibiu João de oferecer novos agrados do tipo que faziam Tatá uma tartaruga tão feliz. Explicou que, apesar de divertido, essas brincadeiras não faziam bem a Tatá. João não acreditou. Brincar é sempre bom e não faz mal a ninguém. Sem paciência ou saída argumentativa, Maria simplesmente proibiu, afirmando “porque sim!”. De agora em diante Tatá seria pudica. E assim se resolveu o problema da depravação. Tatá, agora casta, continuava sendo uma alegria para Maria e João. Gostava dos carinhos no pescoço e de aventurar-se com João. Acostumou-se com a vida no monastério.

Chegou o dia da faxina geral. Maria e João iam tirar teias de aranha até dos cantos mais recônditos da casa. Arrumando seu armário, Maria resolveu jogar fora alguns sapatos. Colocou-os em uma sacola. Juntou outros sacos e sacolas com coisas para jogar fora. Passou pela cozinha levando-os para fora. O saco com  sapatos caiu e Maria não percebeu. Voltou para a limpeza de seu quarto. No quarto ao lado, João arrumava suas coisas.

Tatá estava debaixo do fogão, de frente para a sacola. Viu um sapato vermelho de salto alto e com uma fivela quebrada dentro da sacola. Pensamentos pecaminosos tomaram conta de seu ser e ele correu para dentro do saco. Divertiu-se por horas, tirando o atraso. Acabou dormindo ali mesmo.

Maria, passando novamente com caixas e sacos para jogar fora, recolheu o saco com a Tatá, sem saber que a tartaruga estava dentro. Tatá foi parar na lata de lixo.

Cansados da faxina mãe e filho foram dormir. Não ligaram de não ver Tatá. Estava um pouco frio, pensaram que ela tinha achado um lugar mais quente, como perto do motor da geladeira.

Júlia acordou subitamente no meio da noite e soltou um grito e um palavrão. Percebeu a grande besteira que fizera. Colocou as mãos sobre a boca para evitar mais gritos. Vestiu um roupão e foi ver se tinham levado o lixo. O caminhão já tinha passado. Ligou desesperada para seu irmão, explicando a situação. Ao amanhecer, Seu José ligou para a prefeitura e descobriu o aterro onde o caminhão que passou pela sua casa já despejara sua carga. Júlia e José foram até o lixão.

Montanhas e montanhas de despejo, um cheiro pútrido, multidão de humanos, homens, mulheres e crianças que competiam com os urubus e garças para achar algo nas pilhas de lixo. Todos procuravam comida. Os homens também procuravam recicláveis e objetos de valor.

Seu José logo percebeu que não seria possível sair procurando Tatá pelo aterro. Foram ao pequeno escritório na borda do aterro e colocaram um aviso na parede “Procura-se tartaruga, boa recompensa” com a informação de contato. Um homem passava pelo escritório em direção a um caminhão de lixo que iria começar a descarregar. Não sabia ler.

No caminho de volta, Maria chorava muito. Quanta estupidez!. Tatá, se tivesse sobrevivido ao compactador do caminhão de lixo, não sobreviveria muito tempo naquela imundice.  Pararam no meio do caminho para pensar em como dar a notícia para João.

Uma semana depois, no fim do dia, aquele mesmo homem que estava no escritório quando José e Maria colocavam o aviso sobre o bicho perdido, estava separando pedaços de plástico de uma pilha de lixo compactado. Ouviu um barulho de roda giratória rangendo. Cavou até chegar à fonte da celeuma. Achou uma tartaruga enrolada com uma garrafa de vidro. Desenrolou a tartaruga. Chamou pela filha, de sete anos, e entregou o bicho com a instrução de levá-lo direto para casa.

Já à noite o homem entrou no seu barraco. Beijou sua mulher. A filha estava toda feliz, com a tartaruga sobre sua barriga, com a cabeça e o pescoço para fora, recebendo carinhos da criança. “Vou chamá-la de Tatá”. O pai, então, mandou que a filha deixasse a tartaruga no chão e fosse pedir emprestado um pouco de sal para o vizinho. Com a filha fora do barraco, perguntou para a mulher se ela sabia cozinhar tartaruga. “Sim, sei até aproveitar o casco para fazer farofa”. O destino de Tatá estava selado. Quando a filha voltou, perguntou pela tartaruga. “Foi embora”, disse o pai. A criança chorou. Sentaram-se mãe, pai e filha à pequena mesa, com pratos de sopa rala que a mulher servira. A criança estava muito chateada, mas quem passa fome não se dá ao luxo de não comer por aporrinhamento.

Depois da janta, a filha, ainda com os olhos marejados perguntou ao pai se a tartaruga tinha ido embora porque a casa deles era pequena e feia. O pai beijou-lhe a testa e falou para ela ir dormir. Os caminhões com novo lixo chegariam em algumas horas. Ao ver o sofrimento da filha, a mulher perguntou ao homem se tinha feito a escolha certa. “Sim, um dia a menos que minha menina passa fome”.

E veio um dia, depois outro, depois outro, depois outro.


Antonio Sodré

Antonio Sodré é matemático e estudante de Letras na Universidade de São Paulo. Gosta de transformar histórias em contos. Já foi publicado em revistas literárias, antologias e por meio de concursos literários. Instagram: @acasodre

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