A poética da guerra, do desejo e do colapso em Conceição Rodrigues
A poética da guerra, do desejo e do colapso em Conceição Rodrigues

A poética da guerra, do desejo e do colapso em Conceição Rodrigues

por Mayk Oliveira,

poeta e navalhista assistente

(perfil completo).

O presente livro é muito mais do que um conjunto de poemas, é campo de batalha em chamas. É um manifesto cuja a guerra não é apenas metáfora, mas presença real. Não é novidade que a história da humanidade é cunhada pelas guerras. Portanto, se é história é também cultura. Diria que é um manual de batalha fragmentado, elétrico e sensual, que transborda e invade trincheiras, acende fogueiras no meio do caos urbano e existencial.

Desde os primeiros versos, a autora Conceição Rodrigues, finca sua bandeira na fronteira entre o lírico e o político, entre o delírio e o desabafo, entre o feminino e o indomável. A autora transforma o lirismo em estratégia e a palavra em ataque. Sua poesia revela uma consciência aguçada dos mecanismos de dominação e alienação do mundo contemporâneo. São poemas que ardem de erotismo, de raiva, de lucidez e que não pedem licença. O leitor encontra-se exposto ao inesperado, ao toque suave de uma imagem sensorial e é logo interrompido por um golpe seco, uma ironia amarga, uma provocação existencial. Nada aqui é seguro. Nada é passivo. O livro é povoado por uma figura feminina paradoxal, que surge como arquétipo e desvio, musa e arma. Essa mulher não idealizada é pulsante, bruta, perigosa, viva. É ela quem conduz a guerra silenciosa, em várias frentes de batalha, dos corpos e palavras, quem conhece a força e a desgraça do desejo, quem se entrega e se rebela. Ela não pertence a ninguém, nem mesmo ao tempo. É símbolo da revolta que incendeia sob a pele da cidade, da poesia e da história.

No eu lírico de Cecita encontramos traços de Alejandra Pizarnik, com sua sede de abismo, o desdém carnal de Bukowski, que jamais pediu licença para cuspir sua verdade, um delírio controlado que remete a Rimbaud o poeta vidente, que buscava “desorganizar todos os sentidos” para alcançar o desconhecido e também a herança de Baudelaire com sua tensão entre o sublime e o abjeto, o desejo e a podridão, o erotismo, o colapso e a dor. Misturados com os arranjos da cultura pop e do pós-modernismo, costurados à crítica social e ao desejo político, o livro se constrói como um zine alternativo e panfletário dos tempos do colapso fragmentado, urgente, sujo, lírico que eu chamo de “estética do embate”. Os versos de “marchando em cima da ponte”, por exemplo simbolizam o ambíguo: lugar de travessia, mas também de alienação. Os que caminham sobre ela o fazem sem consciência, como zumbis urbanos atravessando seus próprios vazios. Essa cena sintetiza bem o espírito do livro: um olhar brutal sobre a vida moderna, suas promessas rasas e sua fome de espetáculo. A autora continua sua estética do embate misturando o sagrado ao grotesco, o sexo ao trauma, a violência ao afeto.

A linguagem sem enfeite evoca o vocabulário de rua, de resistência, de quem vive à margem e à flor da pele. Outas palavras são escolhidas para reforçar o sentimento beligerante do livro, “Blitzkrieg”, “Zyklon-B”, “Birkenau” carregando o peso brutal da história. São estilhaços. A poeta aciona sirenes num campo devastado. É a linguagem da memória, da dor, uma arqueologia da violência que não se cala. Versos com a pegada hard rock, riffs de guitarra distorcidos, crus, intensos. Desafiando que apresentemos o nosso melhor na última chance.

Encontramos ainda a dualidade constante entre erotismo e destruição, que emergem do sentimento da luta íntima entre o romântico e o carnal. O amar não repousa e sim catalisa. “Amar é arder, amar é combustão” parece nos dizer a autora. Os relacionamentos são descritos como campos minados de afeto, buscando na falta de lucidez o caminho possível para atravessar a dor sem se perder no abismo. Há, ainda, uma névoa mística e apocalíptica que atravessa os poemas. Uma espiritualidade invertida, anárquica, feita de símbolos em ruínas, de ícones corrompidos, de preces gritadas. É o sagrado do fim dos tempos, o grito insurgente a transformar o mundo (mesmo que pela violência da revelação).

No final das contas, o livro não oferece respostas, mas confrontos. É uma leitura que provoca, desafia e, por vezes, desorienta. Parafraseando Sun Tzu, “O bom poeta é aquele que brilha no pico mais alto do paraíso”. Isso se deve porque venceu, sobreviveu à dança na cerca elétrica. E fez dessa experiência um campo de força poética, onde as cicatrizes viram versos e o grito é o caminho necessário. Ler esta obra é também dançar na cerca elétrica expressão que, mais do que título é um baita convite (desafio?) à leitura com o corpo em tensão e o espírito armado de lucidez.


Conceição Rodrigues

Nasceu em Arcoverde, portal do sertão pernambucano, mas viveu a maior parte do tempo em Recife, onde mora até hoje. É graduada em Letras, especialista em Literatura e mestra em Estudos da Linguagem.  Leciona na Rede pública estadual de ensino.

Recebeu menção honrosa no III Prêmio Pernambuco de Literatura com o livro de contos “Corda para nós”, e no IV Prêmio Pernambuco de Literatura recebeu menção honrosa com o romance “323”. Trabalhou como assistente de Raimundo Carrero na Oficina de Criação Literária- UBE. Organiza e participa de antologias. Dá assessoria, faz mentoria e leitura crítica em produção textual literária.

Publicou em 2020 “Molhada até os ossos”, poemas.

Publicou em 2021 “Os dedos das santas costumam faiscar”, poemas.

Publicou em 2023 “E Deus não acudiu ninguém”, contos.

Em 2025, “Para dançar na cerca elétrica”.

Todos pela Editora Patuá.

cecitha7777@gmail.com

@cecitarodrigues

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