TALITA TIBOLA – 5 poemas
TALITA TIBOLA – 5 poemas

TALITA TIBOLA – 5 poemas

As navalhadas do dia ficam por conta de Talita Tibola. Os 5 poemas que seguem estão presentes no livro Paquiderme, que saiu pela Editora Patuá (2023).

Revista O Navalhista

A distração

quando pequena eu gostava do Dumbo 

lembro que riam dele

que ele era diferente

melancólico,

desengonçado

riam

porque era frágil

então eu 

me compadecia.

eu só não lembrava que ele voava.

Revista O Navalhista

O mundo

minha tia me disse que minha vó sempre falava que o mundo era esse.

ela lembra das duas sentadas em frente à casa

e enquanto minha tia se angustiava com grandes perguntas e o que será que será?

minha vó dizia:

o mundo é esse aqui e essa é a vida, minha filha,

esse passar lento 

do dia a dia.

não há mundo 

além dessas estradas que nos circundam, 

além dessa galinha

por que havemos de nos angustiar então

se essa é a vida?

esse lavar a roupa, a louça, a nossa e a dos outros

todo dia

e apesar de não ser sempre uma alegria

não desagrada.

o jogo de baralho nos convida a

uma canastra

uma cachaça

e ao riso fácil

com as vizinhas.

Revista O Navalhista

A idade

de repente eu não funciono mais 

tá tudo aqui 

mão boca tesão

tá tudo rolando

as contas, 

as prestações

em dia

tem as compras pra guardar

agora e amanhã e depois

eu guardo, 

às vezes não

mas eu durmo, acordo, trabalho, corro 

por pressa ou prazer

eu transo

eu me movo 

mais do que antes

bebo menos

rio na mesma, 

uma boa medida, 

já chorei mais, já fiquei seca

mas hoje estou úmida, úmida de vida

leve e consistente como o vento

firme em meu desejo

flutuante em minha relação com o destino

que aceito

que quando jovem rabugenta reclamava

que quando jovem preguiçosa

stubborn

stubborn

quando jovem

stubborn

dura

na queda

não durava

imóvel

inflexível

quebrava

stubborn

hoje leve 

alegre

consciente

gostosa

mais erótica

e cuidadosa

mas ao contrário do meu tesão 

dessa vida nas veias

desse fogo nos dedos

dessas veias nos dentes

eu não funciono

me falaram

não naquele pequeno tomo

que é o ponto 

que nos faz dar ao outro 

toda a verve

do útero

eu não ciclo

eu só circulo

circulo pela cidade

e amo me entregar

pra essas esquinas

qualquer esquina 

de qualquer cidade

qualquer esquina

temporariamente livre 

de conservadores

que querem que eu cicle

pra produzir 

mais corpos tristes

mas eu queria um círculo de pessoas alegres

que eu sei que sei gerar

se gerisse

se parisse 

essa aposta narcísica que é ver o próprio corpo com o do outro em sua barriga

essa aposta que muitos perdem pois pára no narciso

e ali se prende

e esse corpo outro

esse sujeito

fica colado no invento de quem veio 

antes

mas eu não funciono 

dizem

porque eu não uso o meu corpo como me pedem

eu só cedo o meu cigarro 

pra alguns passantes

esses não querem nada de mim

além do fogo

da palha

e ali as minhas palavras 

não importam 

apesar da Jô que vende doces querer que eu conte 

o que se passou entre ela e mim

escreve um livro 

sobre esse corpo que não funciona ela me pede

eu sou maravilhosa ela me diz

eu sei, eu vejo

ela me pergunta se eu faço novela da globo 

eu só digo a ela que eu não funciono 

ela me diz que mais que eu ela não cabe 

nesse mundo 

e eu concordo

mas vê que eu amo a Jô da glicose

eu encontro com ela e tomo a minha dose de cerveja zero

e eu leio poemas que não importam 

eu leio as estrelas que ninguém olha 

eu vejo o futuro

onde me dizem que eu funcionarei

menos ainda

isso é tão abstrato, pois o futuro não deveria existir 

e se eu leio as estrelas e não acreditam

porque já me falam agora do que eu não posso,

não poderei em minha vida?

então eu sento na calçada além da esquina

e digo

eu só terei um filho 

em poesia

e essa palavra raspa 

no pescoço 

não sei se o meu 

ou se o do outro

que me disse:

diga,

você não tem medo da dor que virá no futuro porque não teve?

e de novo eu me pergunto

que ciência é essa 

se não a das estrelas

que quem me corta diz que não acredita

mas nesse momento eu caio

porque me dizem

que não funciono

eu só queria

ainda

flutuar com meu destino

leve e consistente como o vento 

e até me deixo

com um luto antevisto

de que não posso

não tenho tempo

para outros compromissos

porque se talvez eu funcione

será pela metade

assim como um 

carregador com cabo quase quebrado

e que o mau contato pede um jeitinho específico 

ou como um celular que balança pra funcionar.

e talvez não é que eu não funcione

mas só que eu seja pouco pro mundo 

assim como um tubo de pasta de dente 

com só um fundinho do creme

é pouco pra boca.

só sei que me falaram 

de repente não funciono mais 

mesmo.

até funciono, 

mas não mesmo mesmo

e isso não é nada 

porque me olho e sou tão melhor hoje

do que quando me abortaram

do que quando eu tinha medo de pegar isso 

essa função reprodutiva

explosiva 

excludente

que tá aí

como uma ameaça

e some

e nos dá um futuro perdido

essa função da qual se foge

por muito tempo

e some 

de repente 

some

como um fantasma. 

Revista O Navalhista

O silêncio

eu vejo as tuas poucas palavras

nos teus cerrados beiços

as beijo.

eu ouço o suor do que

não falas

o cheiro 

dos dias rançosos

úmidos

panos molhados 

ao lado da roupa limpa

brilhante, alvejada.

tem um vento leve de tu pra mim

que é só respiro.

acho tão lindo esse lugar,

esse verde

eu ouço

e me toca

nas costas,

me comove

arrepia o

toque no pé

sem querer.

eu sinto a dificuldade que escondes

no teu palavrear

alegre

ativo

em busca de liberdade.

percebo teu cão atado

teu sorriso solto

com um contorno de canto de boca

amarrando um pouco de ressentimento

que escondes

bem 

muito bem

por isso todos te amam

e tu acolhes a todos

mas ali no fundo

querias mais colo

de tudo.

é um segue em frente força coragem

que atropela

que cansa

que dificulta o subir das escadas 

sem balaústres

que não ajuda a descer escadas e não rampas

mundo sem molas 

e sem mão na

roda.

eu respiro os teus pingos de preocupação

e tremo

eu contenho o teu ar suspenso

lento 

a espera de algo

ou em busca

em câmera lenta

eu tento

ralentar

também.

assim me empurras quando sinto perder a força

que te ouço dizer que tenho.

tu não sabes o que vem amanhã

eu suponho 

a dúvida do teu desejo

e duvido também.

eu disfarço, olho pro lado

quando surge o teu não saber

do futuro.

e calo.

tudo

tudo

que queria te dizer.

Revista O Navalhista

A ilusão

é tão pequeno o que 

tu vê do outro

redondo

é tão imaginária toda

essa tua disputa

maluca 

é tão pouco o teu julgamento 

diante do 

mundo 

é tão minúsculo o teu mundo 

diante do 

todo

é tão pouco e te deixa em vão

tentando fechar pensamentos em armários 

o que eu sou? e o que eu fui, será que o outro viu? quero dar tudo a todo instante, e se ele não comer, e se ele não vir e se ele não quiser e se eu não for bom e se ele não vier? 

é tão inútil todo esse 

teu pensamento 

ao contrário 

por que é tão pequeno o que se dá a ver

de ti

viu?

e é tão malvado o teu olhar pro pequeno do outro que vês redondo

tu quadrado 

teu julgamento com horário 

marcado

tu tão pequeno

mesmo

tu tão pequeno

coitado 

tu tão pequeno 

tu que diz:

ele é tão pequeno e pensa que é grande,

iludido 

eu que sei que ele é pequeno

malandro

eu te digo:

tu é um grande, um grande 

um grande 

mesquinho

Sobre a autora:

Talita Tibola é escritora, psicóloga, tradutora e pesquisadora. Nas áreas em que atua, a arte e a palavra ocupam o centro como ferramenta de encontro e escuta. Em 2022 publicou Ainda morreremos tanto e será só o começo pela editora Urutau, o livro ficou em segundo lugar no Prêmio Book Brasil na categoria poesia. Em 2023 lançou Paquiderme, seu segundo livro de poemas, pela editora Patuá.

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