FRANCISCO MARINHO BAPTISTA – Território, afeto e resistência: ecos da luta em Torto Arado e narradores de Javé [artigo]
FRANCISCO MARINHO BAPTISTA – Território, afeto e resistência: ecos da luta em Torto Arado e narradores de Javé [artigo]

FRANCISCO MARINHO BAPTISTA – Território, afeto e resistência: ecos da luta em Torto Arado e narradores de Javé [artigo]

O objetivo deste ensaio é analisar e comparar a relação do sujeito com o território nas obras Torto arado, de Itamar Vieira Junior, publicado em 2018, e  o filme Narradores de javé, lançado em 2003. Ambas as obras apresentam as lutas pela permanência nas terras onde seus personagens residem e trabalham. A partir disso, torna-se necessário correlacionar essa problemática para uma análise mais aprofundada. Serão comparadas não apenas as questões territoriais presentes em Água Negra e no Vale de Javé, mas também os obstáculos que permeiam a vida dos seus habitantes.

O romance Torto arado está dividido em três partes distintas: A primeira é relatada sob a perspectiva da personagem Bibiana; a segunda pela sua irmã Belonisia; e a terceira por Santa Rita Pescadeira, uma entidade religiosa. Já o filme narra a história dos moradores do vilarejo do Vale de Javé e o desespero diante da construção de uma represa que irá  alagar a cidade. A única forma de impedir a destruição do território é provar o valor histórico e cultural do povoado, por meio de uma narrativa que tenha base científica. 

Primeiramente vale ressaltar que existe uma diferença sutil na maneira como a relação do indivíduo com o território foi tratado nas duas obras. No romance, agregados da fazenda Água Negra, os habitantes têm direito a permanecer no local para produzir os seus alimentos; contudo, uma parte de suas produções, obrigatoriamente, vai para os proprietários legais da terra, que era, a princípio, a família Peixoto. Além do mais, eram condicionados a construir casas de alvenarias iguais às dos proprietários, ou melhor, só eram autorizados a construir as casas de barros. Já no filme, embora os residentes do Vale do Javé não produzissem alimentos para nenhuma família proprietária, já que a achara quando fugiam da guerra e percorreram quilômetros até encontrar um lugar propício para a construção de suas casas, tinham como a preocupação central salvar o seu território por meio da narração da história científica do seu povoado.

A partir das considerações iniciais, pode-se perceber que a comunidade de Água Negra vivia sob uma forma de opressão, um tipo de escravatura moderna praticada por parte dos proprietários das terras, uma situação que se assemelha a do momento pós abolição da escravatura no Brasil, em que os ditos escravizados libertos não tinham por onde caminhar nem como sobreviver, então retornavam aos seus senhores. “Sutério pegou a maior parte da batata doce com as duas mãos grandes que tinha e levou para a Rural que havia deixado em nossa porta. Pilhou também duas garrafas de dendê…” (Vieira Junior, 2018, p. 81). A Bibiana confrontou ao seu pai sobre os atos dos proprietários, os quais apropriavam  da maior parte do cultivo do seu pai e de toda comunidade ou, pior ainda, eles indicavam o que queriam levar e a quantidade que pegariam, tudo em troca de permanência em Água Negra. Era uma exploração laboral bastante intensa do ponto de vista da Bibiana; contudo do seu pai Zeca Chapéu Grande era diferente, pois “nos fez saber, em muitas oportunidades, que falar mal de quem havia nos acolhido e permitido que morássemos e dali vivêssemos era ingratidão” (Vieira Junior, 2018, p. 125). Percebe-se, portanto, uma normalização da situação de exploração por parte de Zeca perante o proprietário, uma submissão, um respeito e uma obediência a favor da sobrevivência uma espécie de dívida por causa da permissão da ocupação e construção da sua casa.

Por outro lado, ainda que haja uma exploração muito intensa da família Peixoto, a comunidade criou um vínculo afetivo muito forte com o território, conforme evidencia Salustiana mãe da Bibiana e Belonisia:               

Assim como apanhei cada um com minhas mãos, eu pari esta terra. Deixa ver se a senhora entendeu:

esta terra mora em mim», bateu com força em seu peito,«brotou em mim e enraizou»…. Mora aqui em meu peito porque dela se fez minha vida, com meu povo todinho. No meu peito mora Água Negra, não no documento da fazenda da senhora e seu marido. Vocês podem até me arrancar dela como uma erva ruim, mas vocês nunca irão arrancar a terra de mim» (Vieira Junior, 2018, p. 222).

Diante do exposto, nota-se um vínculo afetivo por parte da população para com o território, uma ligação tão profunda para além, é claro, da sobrevivência, da repressão, da escravatura modernizada dos proprietários. Essa declaração que serve, ao mesmo tempo, como confrontação aos Peixoto no concernente à expulsão dos moradores da Água Negra, transcende a ideia de não ter por onde ir, ou seja, queriam permanecer e preservar a memória dos seus antepassados, uma vez que foram tantas as gerações dos afrodescendentes e indígenas que vivera na Chapada Diamantina. A dor que os atormentava, com os passares dos anos, transformou-se num enraizamento do amor, um apego afetivo e desenvolveu-se um sentimento de pertencimento. Nesse mesmo sentido Cerqueira (2020), acrescenta: “pequena e precária casa de Água Negra, feita de barro, como todas as demais da fazenda, é o espaço ao redor do qual todos giram, do qual ninguém escapa, até porque não se deseja sair”. Em outras palavras, era na casa de Zeca Chapéu Grande, que era grande curador da fazenda, que se organizava as festas de Jarê em que toda comunidade participava, inclusive o prefeito do povoado, nesses momentos de alegria embora instantânea esquecia-se a miséria, a exploração, a opressão, porque eram guiados pelas santas e encantadas. Foi numa das noites de Jarê que uma encantada propôs ao prefeito a construção de uma escola em Água Negra para os filhos de trabalhadores. Existe, por conseguinte, um grau de pertencimento que fez com que a população  jamais quisesse abandonar a fazenda de Água Negra.

Da mesma forma, percebe-se esse fenômeno no filme Narradores de Javé com o anúncio da construção da barragem, toda comunidade se engaja para preservar o povoado por meio da narração da história, em particular do seu surgimento. Evidenciando, assim, o amor a Javé, o desejo da permanência a todo custo, apesar da população viver numa situação muito precária: “eu tenho meus pais aqui, meu marido todos enterrados aqui, então, queremos ficar aqui para sempre. Os engenheiros não podem nos tirar daqui, não vai nos tirar daqui, nós não vamos sair daqui de jeito nenhum” (Caffé, 2003). Esse grito angustiante  veio da parte de uma das anciãs no momento da gravação e escuta das opiniões dos moradores, inclusive foi nesse exato momento que Daniel decidiu apontar uma pistola para a entidade máxima de expulsadores e acrescentou: “eu não vou deixar a minha casa”(Caffé, 2003). Tantas vozes fizeram coro a essas reivindicações, contudo, ao contrário da comunidade da Água Negra, os engenheiros não levaram em consideração os gritos dos moradores e executaram o projeto .

Dessa forma, fica explícito que o projeto da comunidade em carregado por Antônio Biá grande escrivão, não se concretizou, todavia verifica-se um amor muito profundo, um esforço bastante enorme, um vínculo afetivo e um pertencimento forte dos moradores de Javé para com o seu território. Foi até emocionante assistir, no final do filme, o momento em que a água tomou conta do povoado, enquanto toda a população permanecia em conjunto parada observando e chorando, inclusive Antônio Biá desce na água, evidenciando o amor ao seu território da sua maneira. Não é porque fracassou o seu projeto, mas sim a compaixão e a afeição tanto com o seu povoado quanto com a sua gente, uma vez que, ao sair da água, recomeça imediatamente a escrita desesperada da história, mas foi em vão. Enfim, tanto no livro como no filme há aspectos que se aproximam, e entrelaçam-se (a pobreza extrema, a ausência do Estado Brasileiro, o vínculo afetivo com o território) e, ao mesmo tempo, que se vão distanciando (o trabalho de escravatura, a opressão, as construções de tipos de casas). 

Além disso,  é oportuno discorrer neste ensaio sobre a terceira parte de Torto Arado narrada pela encantada Santa Rita Pescadeira, na qual Bibiana e Severo, os quais haviam fugido de casa quando a menina estava grávida,  retornam à Água negra. Voltaram à terra já transformados Severo que aprendera sobre a militância no sindicato de trabalhadores do campo, por certo, levou esse aprendizado com ele. Assim, criou em Água Negra o mesmo tipo de sindicato que militara. Bibiana, por sua vez, sempre tivera o sonho de se tornar uma professora, formou-se no magistério e agora começou também a lecionar em Água Negra. A fazenda doravante teve um novo proprietário Salomão, que era mais severo com a população do que Sutério. “Agora o novo dono… depois de Sutério se aposentar, dizer que não poderíamos mais sepultar ninguém na Viração. Que era crime contra as matas. Contra a natureza. Que o cemitério estava próximo ao leito do rio” (Vieira Junior, 2018, p. 173). Salomão ao adquirir a terra, emplacou ainda mais a convivência que tinha sido opressiva e exploratória, restringiu muitas coisas dentre as quais destaca-se o fechamento do cemitério da Viração como acima consta. Sob esse prisma, Cerqueira (2023) enfatiza que  Salomão, o novo proprietário de Água Negra, ao contrário de família Peixoto, que era antigo proprietário que é o que rege as relações que o crítico chama de pré-moderno com Zeca, Salomão já é um proprietário diferente, ele é muito mais presente na fazenda, busca explorá-la no sentido muito mais concreto do que era antes. Dessa forma, o novo proprietário vai colocando muito mais interdições do aquelas que existiam nas relações do favor. Por exemplo, o professor enfatiza o fechamento do cemitério da Viração onde todos os habitantes da região enterravam os seus familiares. Nesse sentido, a encantada reaparece também num momento de acirramento da luta de classe, da opressão que esse povo sofre diante da terra, que é um dos elementos centrais da narrativa.

Outrossim, o crítico reforça o ponto principal deste texto: a terra, sendo um elemento central e de fundamental importância no Torto Arado. Observa-se, contudo, a continuidade da opressão por parte de Salomão de acordo com o que foi exposto acima, ele torna-se ainda mais presente, sai evangelizando de casa em casa no povoado para pedir a conversão dos moradores para a religião católica. Em contrapartida, verifica-se engajamento forte de Severo na militância, fazendo uma oposição dinâmica às ações de Salomão, educando e esclarecendo o povo sobre os seus direitos e deveres. Nota-se, pois, uma transformação e atuação imprescindíveis dos dois personagens Severo e Bibiana por meio da educação e da militância, ambas as coisas contribuíram bastante para as lutas e esclarecimento da população de Água Negra.

Além do mais, “Severo colheu assinatura para fundar uma associação de trabalhadores. Disse que precisávamos nos organizar ou, de contrário, acabaríamos sendo expulsos. Para muitos era impossível se imaginarem longe de Água Negra” (Vieira Junior, 2018, p.192). Nesse ínterim, pode-se fazer uma aproximação com o ponto principal do filme, que é a escrita da história do Vale do Javé, em que se observa a procura dos possíveis caminhos em nome da permanência dos moradores. Ressalta-se o engajamento da população como um todo no que diz respeito às lutas e à procura das saídas para a continuidade. Dito de outro modo, foram nesses instantes que mesmo inconscientemente evidenciam o vínculo afetivo com o território, porque na sua consciência como salienta Cerqueira (2023): “essa comunidade vive terra e trabalham nessa terra, mas eles não têm a posse sobre a terra. Assim,  consolidam uma consciência quilombola que os coloca detentores desses lugares”. Já sentem um pertencimento profundo até se esquecem de que foram dadas essas terras “«Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos quilombolas.»” (Vieira Junior, 2018, p. 193). Chegou a um momento que, com auxílio de Bibiana e Severo, a população jamais aguentava nem tolerava mais a exploração ou a opressão por parte dos proprietários, inclusive esse instante culminou com a morte de um lado Severo e do outro Salomão. Existe, como se vê, uma ligação construída que o indivíduo edifica ao longo do tempo com seu  povoado e passa a sentir-se um enorme afeto.

Em suma, ao longo deste ensaio, foi analisada e comparada a relação do sujeito com o território no romance Torto Arado de Itamar Vieira Junior e no filme Narradores de Javé, constatou-se essa relação que justamente transcende a preocupação de jamais ter por onde caminhar. Com os passares de muitas gerações, o indivíduo sente-se um vínculo afetivo muito forte com a terra onde está enterrada a sua família, onde nasceu e vive, apesar da pobreza, da opressão, da escravatura modernizada e de tantas outras questões. “Torto Arado não só retoma a questão agrária brasileira, um tanto negligenciada em tempos de hipervalorização do agronegócio, como o faz a partir do ponto de vista de três mulheres, negras e camponesas” (Cerqueira, 2020, p.90). Acrescenta-se nesse mesmo ponto de vista o filme Narradores de Javé. Verifica-se, desse modo, que tanto o filme como o livro apresentam-se esse outro Brasil, um Brasil talvez negligenciado ou desconhecido. 

REFERÊNCIAS

CERQUEIRA, Rodrigo Soares de. As diversas temporalidades de Torto Arado. Revista Piauí, São Paulo, 2020, p. 81-91).

CERQUEIRA, Rodrigo Soares de. Torto Arado e as encruzilhadas do pensamento progressista brasileiro [palestra]. Letras Debates – UFMG, evento online, 2023. 

NARRADORES DE JAVÉ. Direção: Eliane Caffé. Brasil: Aurora Filmes, 2003. (142 min).  

VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado: se houver. Lisboa: Grupo editorial Leya, 2018.


Francisco Marinho Baptista

Sou Francisco Marinho Baptista, graduando em Letras Português pela Universidade Federal de Alagoas UFAL, sou estudante da Guiné-Bissau no Brasil, sou escritor e vencedor do XIX Concurso Literário José Carlos Schwarz 2024, na categoria contos e vários contos publicados na Luminescências Revista de Literatura e Outras Artes. Sou amante da literatura brasileira e sou presidente dos estudantes estrangeiros da UFAL.    

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