BRUNO CENA MACEDO – Fiar, chorar e esperar [conto]
BRUNO CENA MACEDO – Fiar, chorar e esperar [conto]

BRUNO CENA MACEDO – Fiar, chorar e esperar [conto]

            Natércia era minha avó e minha mãe. Não saía de casa sem tocar no mezuzah e na volta obrigava-se a fazer o mesmo. Filha única, mãe de duas filhas, esposa, merendeira escolar. Fora atingida pela maldição da família – “ninguém daquela gente terá mais que três filhos” – minha avó tinha o poder de granfinar tudo, não aceitava a realidade simples das coisas, lembro-me que costumava fazer ratatouille, um prato típico de camponeses franceses pobres, mas toda a vizinhança achava chique. Aprendeu a pronúncia correta quando era pequena em São Luís do Maranhão, onde nasceu e gabava-se de ser ludovicence, gentílico que afrancesava para parecer mais importante do que era.

            Não tivemos uma avó que fizesse bolinho de chuva, nem que tivesse habilidades como a de fazer crochê. Ela não nos protegia. Não nos abraçava. Não se comportava muito como a maioria das avós. Certa vez falou a minha prima Teldes que a detestava. Era tão estranha, às vezes parecia que ela era como nós, criança.

            As mulheres de nossa família carregavam uma sina que também era um fardo dolorido, a inclinação para a loucura. Começou com Maria Eufrásia, minha trisavó, mulher de saber e de posses, mas morreu louca e acusada de ser bruxa e endemoniada.

            Seguiu com Justina que sendo somente uma agricultora, desempenhava maiores habilidades como rezadeira e parteira. Fugira dos estudos como o diabo da cruz, casou-se com um vaqueiro, morreu sem a posse completa de suas faculdades mentais, arrastada no percurso de cinco quilômetros por um cavalo no caminho para fazer um parto. Durante muito tempo soubemos apenas que “era louca, mas sabia fazer um parto como ninguém”.

            Mulheres exploradas pelos maridos, antes pelos pais, depois pela sociedade e no primeiro indício de loucura eram descredibilizadas, trancafiadas em casa e quando não servia mais a nada eram deixadas a própria sorte em algum sanatório.

            Que ausência tão grande foi não ter tido uma avó de verdade. Minha prima Aparecida no leito de morte queixou-se muitíssimo acerca dessa ausência de nossa avó, enquanto ela nos observava e dizia que não nos conhecia e tia Rosália que era amarga como o fel nos repudiava quando nos queixávamos. Era tão visível que nossa tia-ferro estava destinada a cumprir a sina das mulheres de sua família, já que era filha única, pois minha mãe havia morrido e deixado toda a família imersa em desolação.

            Nosso avô era nossa sustentação, homem sábio e infeliz. Casou-se na adolescência com a mulher que não amava e seguiu até a morte o ritual laboral para o qual fora destinado ao nascer, mas o detestava. “O referido é verdade. Dou fé” sangrou lhe, até a última gota de tinta do seu carimbo e de sua vida.

            Minha tia quebrou a maldição da família e teve quatro filhos. Um dia li em um romance que o destino das mulheres daquela história era fiar, sofrer, chorar e esperar. Diferentemente as nossas não fiavam, ao menos nunca soube ou vi, mas sofriam e choravam em um longo processo de espera, espera aquela que nunca conseguimos compreender.

            Bem mais tarde compreendi que as nossas mulheres esperavam a loucura e os homens a morte. E nos faltava uma avó, uma avó que fosse como as outras. Faltava de ambos os lados. Faltava chão para nós e uma ausência de tecidos para cobrir as nossas dores.

            Faltava mãe, pai, faltava coragem, faltava misericórdia do destino. Faltava irmão ou irmã. Sobrava desilusão e domingos a fio, não sabíamos o que era “amor”, essa palavra cheia de luxo. Será se o ratatouille era amor? E o suportar do nosso avô era amor? A labuta interminável de nossa tia era amor? O certo é que não tínhamos como corresponder à altura do luxo que o “amor” exigia.

            Não tínhamos nem santos em casa como as outras famílias da nossa rua, não havia o filho de nenhum deus sobre uma cruz de prata na sala imensa de nossa casa, a quem pudéssemos passar a mão e pedir algo ou lamentar-se com aquilo.

            Parece até que não tínhamos um deus para nós ou um que nos tivesse para ele. Um deus que pudesse nos aceitar com todas as nossas dores, ausências e amarguras. Que nos acolhesse com a piedade e benevolência dos santos da casa de meu amigo Jorge e até mesmo um Cristo com olhar e corpo de sofrimento, para que estando em nossos colos, pudéssemos consolá-lo, tratar suas feridas, entender suas dores e nos esquecer por um misero momento das nossas. Mas não tínhamos.

            Nossa avó Natércia não era de todo um fracasso, ela sabia muito bem manejar ervas, curava qualquer ferimento ou enfermidade, aprendera tudo isso com sua mãe que livrou muitos da morte e através de seus braços negros muitos vieram à vida.

            No dia em que não foi mais possível suportá-la em casa, sabíamos que ela não voltaria mais, que a estávamos perdendo ali. A sina de sua trisavó, sua bisavó, sua avó e sua mãe estava a cumprir naquela vida também. Mesmo sem raciocinar muito parecia despedir-se, deixando imperar o começo de sua ausência em nós, uma ausência que sempre se fez sentida.

            Sem culpa, remorsos ou consciência, seguimos nossos passos tão rasos, de um povo tão numeroso, mas tão dividido que cumprindo o destino nas mulheres e homens de nossa gente, segue a cumprir a missão de fiar, chorar e esperar.


Bruno Cena Macedo

Bruno Cena Macedo nasceu em Canto do Buriti (PI) no ano de 1996 e reside atualmente em Passo Fundo (RS). Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual do Piauí, pós-graduação lato sensu em Psicopedagogia Institucional e Clínica pela Faculdade Famart; em Educação Continuada pelo Instituto Federal Sul-Rio-Grandense; em Linguagens e suas tecnologias pela Universidade Federal do Piauí e em Ciência da Literatura pela Faculdade Dominius. É membro da Academia Independente de Letras; da Academia Internacional de Literatura e Artes; da Associação Gaúcha de Escritores; da Academia Luso-Brasileira de Letras do Rio Grande do Sul; da Academia de Letras dos Municípios do Rio Grande do Sul e da Sociedade Piauiense de Poesia. É autor dos livros: Aos clementes, esperançai-vos (Editora Porto de Lenha – 2020), Moinho (Caravana Grupo Editorial – 2021, traduzido para o espanhol) e Crisântemo (Editora Bestiário – 2023). Participou como coautor em diversas antologias literárias. Atualmente é professor da rede estadual de educação do Rio Grande do Sul e cursa Mestrado em Letras na Universidade de Passo Fundo, onde realiza pesquisas com narrativas contemporâneas da literatura afro-brasileira.

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