Que os seus lábios me cubram de beijos!
O seu amor é melhor do que o vinho.
Leve-me com você! Vamos depressa!
Seja o meu rei e leve-me para o seu quarto.
(Cânticos de Salomão 1: 2 e 4)
Seus pés ardem feitos os de Sulamita, no Cântico dos Cânticos, de Salomão. O sabor das suas vísceras mentais explodem rumo ao destino da fatalidade. Dia desses, em um verão quente, raspei meus calos na areia do mar. Era tudo tão precioso. Lavava meus pés na lembrança de Sulamita. Aquele mar, de timbre e voz roucos, me chamava para penetrá-lo. Tive medo, receios, quebrantos, sandices e dilacerações: “Tudo habita nesse oceano”. Entrei, mas antes extraí um pouco da gordura da pele de meus pés e das minhas coxas. “Ah, Sulamita, você e seu noivo”. O mar, naquele instante, me tragou: enrosquei minhas costas em suas ondas borbulhantes e quentes. Minhas mãos e cabelos libertos ao vento sobressaltado, me fizeram, temporariamente, prisioneira dos corais recheados de ouriços. Tangente e eloquente: vibrei! “Salve o oceano! Salve meu corpo arenoso e salgado”. Depois dessa libação, fui cuspida para fora do oceano. Voltei à terra firme: Sorrindo. Híbrida. Vaporosa. Suada da água salgada. Desperta: Aleluia! O mar me tragou e me cuspiu. Me devolveu ao chão. “Sulamita e o seu amor”. Eu sentia sargaços em meu pés. Tirei-os e mandei-os de volta às profundezas daquele manto azul-esverdeado. Mas não boiei em lentidão, não nadei com braçadas largas, não urinei no mar, ou seja, não fui eu mesma: fui Sulamita, a culpada. Gritei. Declamei os Cânticos dos Cânticos em voz alta! Desejei ser sorvida novamente e ondular minhas mãos nas partes baixas do meu corpo com o assoalho musical das feiticeiras marítimas: as sereias. Num instante, estava solar e tudo fazia sentido. Sentei-me na areia branca com filigranas de moluscos sorrateiros e pequenos siris com suas patas minúsculas a me chamar, um aceno extasiante. Me vesti com uma camisola de cor carmim. Pensei demasiadamente, como nunca. Acendi um cigarro, sorvi a fumaça: o mar havia feito esse mesmo expediente comigo. Cuspi, em seguida, uma saliva de gosto acinzentado do tabaco, agregada com os restos das salmouras presentes na ponta da minha língua: o mar fez isso comigo. Sorri como uma louca. Deitei-me. Desfiz os nós marítimos. As bolhas brancas do Tritão, esposo de Sulamita, acenderam fogachos em minhas pernas trêmulas e, hirta, fiquei a gozar lambidelas das moreias e dos tentáculos másculos dos oceanos em meu cofre sagrado. Já saciada e cansada, desmaiei. De sorte, acordei em meu recinto fraternal desse sonho marítimo em meio ao sagrado e ao profano. Explico. Meu corpo lá estava, molhado. Febre de mulher na menopausa. “Vou tomar um banho”. Vou limpar-me desse mar salgado pleonástico: as vísceras oníricas de caracóis rasteiros, em seus caixotes de casulo, vieram a desaparecer através das descidas líquidas e frias do banho no chuveiro, e me suavizaram. Eu era outra mulher. Estava salva de meu pesadelo noturno. Estava segura em minha cela de alvenaria com bordas ondulares de cerâmicas e de tonalidade monocromática rastejada para o azul celeste. O banho frio veio para aplacar a maldita Sulamita, dos Cânticos dos Cânticos, com seu amado de pele afogueada. Eu agora vou ler os últimos versículos deste livro, rezar alto e me confessar com o padre, amanhã. O mosteiro onde vivo, das Carmelitas Descalças, me obriga a tal. Meu Deus, estou com os pés limpos. Será que foi a água salgada que forjou esse milagre? Ou apenas a água doce de meu chuveiro? Meu Deus, eu gozei, fumei, cuspi, fui arrebatada para longe e voltei. Por que eu escolhi esse destino? Um dia, no entardecer, serei Santa e ermitã de mim mesma. Esse sonho insolente, me rendeu um voto perpétuo de silêncio a pedido do sacristão do monastério. Melhor assim: não engolirei, nem vomitarei mais sargaços ou peixes com minha mandíbula lancinante de pedigree duvidoso. Voltemos às orações, irmã Saudade! Voltemos à Sulamita casada com a Igreja – interpretação honrosa do livro de Salomão, o Sábio, com suas concubinas legitimadas ao seu redor, meu Deus! Eu poderei entrar em desmaio! Cuida-me! Por que o ventre de Maria, a Santíssima, não se dilacerou aos nove meses, mas cuspi-o, o Nosso Senhor, em holocausto a nós, humanos? Antes cordeiros ou vacas úberes, em sacrifício, do que Ele morto, sangrando até não mais existir. Silêncio, monja! Teus votos são couraças em vossa boca, mas tua mente inebriada do oceano pútrido de Mefisto, te desaconselha. Eu te aconselho: reze, além disso, reze! Um dia serás azul celeste com sargaços em vossos trajes simples de um túmulo frio do Mosteiro das Carmelitas Descalças – vosso destino e fim [assim me disse a Santíssima Trindade].

Yvisson Gomes dos Santos tem doutorado e mestrado em Educação pela UFAL. Especialização em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira pela Academia Alagoana de Letras. Licenciado em Filosofia pela UFAL. É um escritor alagoano [em devires] e professor efetivo de Filosofia pela SEDUC/AL.