Algumas noites acordava assustado. No pesadelo que se repetia com maior frequência, a garotinha de cabelo cacheado e vestido rosa que apresentava seu programa favorito entrava na sala de aula com um sorriso grande demais para um rosto tão pequeno e mandava ele escolher uma cor. Ele implorava para não participar, mas ela insistia. Sua voz ia ficando mais grave cada vez que ela sussurrava: escolha uma cor. Ele escolhia vermelho, amarelo, azul, todas menos aquela. Mas ela não permitia. E então ele pedia. A sala inteira ria. Todos os seus colegas não eram mais seus colegas, apenas bocas enormes que gargalhavam com os dentes a mostra repetindo infinitamente: rosa, João?!
Ele especializou-se em Engenharia de Desenvolvimento de Equipamentos de Proteção e Ataque em Larga Escala, única área que nenhum de seus conhecidos poderia ingressar. Era o melhor no que fazia e ganhou respeito por isso. Não foi surpresa quando seu nome apareceu nos Arquivos Nacionais como a primeira opção para encabeçar a equipe responsável pelo Projeto Retorno. Ele faria um trabalho esplêndido e ganharia uma fortuna para isso.
Se aquilo não tivesse acontecido…
Alguém resgatou o vídeo daquele trecho específico do programa. Uma semana antes da apresentação do Projeto Retorno para a Alta Cúpula Militar, seu nome havia virado um mero meme. Entretanto, ninguém saberia que era ele, certo? O nome era comum. Ninguém jamais ligaria aquela bobagem a sua pessoa.
Mas todos desconfiaram da sua apreensão. O nervosismo que nunca lhe foi comum, estava ali. Durante a palestra de abertura derramou água em seu uniforme. Saiu constrangido sem finalizar sua apresentação.
Algumas semanas depois, o primeiro teste com um ser-humano foi realizado com magnificência. A viagem ao passado agora era possível. Entre os aplausos de militares e colegas cientistas, algo inesperado. Ele escutou alguém rir e dizer: “Parabéns, João.”
Suspeitou de imediato, não apenas porque ninguém lhe chamava pelo nome no local de trabalho. Foi algo na entonação. Seu nome pronunciado com divertimento, esticando demais o deboche em cada sílaba.
Intrigado, analisou cuidadosa e discretamente os presentes no laboratório, sem sucesso em identificar de quem havia surgido aquela frase. No entanto, o recado era claro. Alguém sabia do ocorrido. Os acontecimentos daquele dia ecoaram em sua mente, revirando os traumas encobertos ao longo da vida como porcos fuçando lama. Os pesadelos retornaram inevitavelmente.
Naquela madrugada, ele estava sozinho no laboratório, uma garrafa de uísque pela metade e um único pensamento intrusivo rondando sua mente: iria consertar o passado.
Talvez pelo excesso de álcool nublando seu raciocínio, acabou errando os cálculos e transportou-se para o momento errado.
Uma apresentadora jovem, loira e atraente, ameaçava contar uma piada pesada em um programa infantil.
— Tinha uma mulher que era muito metida. O nome dela era Carla…
Impulsionado pela raiva de estar no ponto errado, chutou um emaranhado de fios, desligando-os de onde quer que estivessem conectados. O estúdio caiu em completa escuridão e um alvoroço tomou conta do ambiente, todos tentando entender o que havia acontecido enquanto acalmavam as crianças chorando com medo do escuro.
O intruso nos bastidores aproveitou a confusão para desaparecer sem deixar rastro. Como primeira medida ao retornar, verificou se a cena da qual se lembrava ainda existia. Tamanha foi sua surpresa ao perceber que a apresentadora em questão não era mais uma celebridade. A única menção feita a ela na internet estava na matéria de um blog sobre personalidades promissoras que caíram no esquecimento.
O coração martelava em seu peito, o êxtase lhe deixando sóbrio imediatamente. Não conseguiu trabalhar naquele dia. Ora arrependido, ora orgulhoso do que havia feito. Por um impulso infantil, destruiu a carreira de alguém, apagou uma trajetória de sucesso e reescreveu a história. Tudo isso para quê? Por uma questão que poderia ser resolvida na terapia! O que fazer, então?
Tentaria novamente. Desta vez, mesmo sem a embriaguez, findou em um camarim. Mais uma vez o ponto errado. Temendo andar pelos corredores e ser avistado, roubou um pequeno controle remoto, na esperança de que a menor das alterações geraria um resultado positivo assim como da última vez. E assim, ao invés de uma churrasqueira com controle remoto, o inventor apresentou ao vivo um hiper-filtro que tornava a água do mar potável e refinava o sal no processo.
De volta ao seu tempo, incentivado por resultados tão significativos, ele percebeu que poderia ir além.
Uma equipe de reportagem em Varginha jamais encontrou o sujeito que pagaram para fingir ser um alienígena, achando apenas a fantasia de ET flutuando num rio próximo.
Um motorista de caminhão em Taubaté foi surpreendido por uma grávida arremessada na frente de seu veículo. Só não puderam explicar de forma satisfatória a quantidade exorbitante de pano e espuma de colchão que ficaram espalhados no asfalto.
A prática trouxe uma certa sutileza ao trabalho que estava sendo feito noite após noite. Mas junto a isso veio o tédio. Ser um herói anônimo não era o que buscava. Ninguém saberia que foi por sua causa que matérias sobre o propósito diabólico dos animes jamais foram ao ar. Que foi graças a ele que médiuns, videntes e astrólogos em programas de TV estavam proibidos desde os sequestros de 2005. Quantos outros feitos espetaculares jamais seriam associados a ele, sendo que para o restante do mundo, não havia qualquer lembrança de que eles sequer aconteceram?
E os pesadelos continuavam. Aquele execrável pesadelo noite após noite!
Restava apenas mais um trabalho e então tudo voltaria ao normal.
Uma certa manhã, a extrovertida apresentadora mirim deixaria de receber aquela fatídica ligação, pois um pequeno ouvinte jamais chegaria ao telefone.

Silva é especialista em ser comum, atuando como ilustrador, escritor e professor sem se destacar em nenhuma dessas áreas. Possui trabalhos publicados em revistas, jornais e antologias diversas.