Tem sempre um bicho guardado em nossas histórias de infância. Na minha aparecem um cachorro salsicha, gatos, peixes de aquário, coelhos, passarinhos, um carneiro… E até um elefante. Foi na inauguração do primeiro shopping center da cidade; o empresário anunciava volta grátis nas costas de Jumbo, o elefante. Claro que não dei sossego a meus pais até que prometessem me levar ao passeio. Esse dia pareceu levar anos para chegar, mas enfim aconteceu.
Em minha imaginação infantil achei que o elefante estaria me esperando para desenvolvermos o começo de uma grande e exclusiva amizade. Quando me deparei com as voltas da longuíssima fila-caracol de crianças, pais e babás ao redor do pátio, compreendi que os demais habitantes da cidade tiveram a mesma fantasia. Sob um sol de savana em auge de verão éramos um mundo de gente aguardando, impaciente, a própria vez de fazer história. O ar abafado ampliava a tensão da espera: cada vez que uma dupla de privilegiados era guindada ao lombo do animal os outros os fuzilavam com olhares de inveja e de impaciência.
Tentando poupar Jumbo, os tratadores faziam com que ele desse uma voltinha besta, para logo descarregar os viajantes recém-montados. Buscavam dar vazão à expectativa desmedida de todas as infâncias ali reunidas (sim, porque os pais também ansiavam por ver seus rebentos feito paxás em desfile). Para nós que assistíamos ao circunvoleio dos já contemplados era um tempo sentido como longa viagem de expedicionários até o Paquistão – que é, como se sabe, lugar de onde vêm os paquidermes.
A medida de economia elefântica revelou-se inútil: com o calor aumentando, a agitação crescente e o vozerio nervoso e impaciente se fazendo notar (“Tá demorando, volta!” “Ei, esse furou a fila!”, “Não, agora sou eu, sai!” ) os vultos infantis pareciam se multiplicar, feito gremlins encharcados. Mais um pouco e seria possível sentir a terra tremer, como se uma fonte de alta pressão estivesse prestes a jorrar cabeças, braços e pernas infantis, em meio a gritos e muita confusão. Não tardou para começarem empurrões, choros ressentidos, pais querendo defender os legítimos direitos de seus filhotes. Babás em polvorosa retiravam-se com seus protegidos, buscando abrigo.
Ao redor de Jumbo o círculo formado pelos que estavam nos primeiros lugares da fila ia gradualmente ficando mais estreito, o pátio diminuía de tamanho a cada volta desse mini-passeio. Seria difícil dizer quem corria mais risco, se nós da assembleia infantil ou se o animal maior. Os organizadores perceberam a cilada em que havia se metido e mais do que depressa retiraram o animal de cena, com a vaga promessa de que voltaria após breve descanso – o que obviamente não aconteceu.
Estaria nesse intercessão salvadora a marca do deus Ganesha, movido por aquele desfile antiecológico? O fato é que suspenderam tudo: o elefante, a volta no pátio, o tempo mágico de um passeio por acontecer. Os que não conseguiram voltamos frustrados para casa, tentando encontrar a razão de ser da injustiça no mundo. Até hoje divido a humanidade entre pessoas que deram a volta no lombo do elefante naquele longínquo ano e os que ficaram a ver navios. Às vezes até imagino reconhecer no olhar triunfante de alguns que passam por mim essa diferença crucial, o signo dos que venceram na vida, deixando a nós outros a tarefa de encontrar motivos superiores de compensação da nossa deficiência elefantina.
Recolhi meu elefante àquele quarto invisível, onde guardamos desejos não realizados e esperanças mais queridas, reservas de futuros possíveis. De vez em quando vou até lá, tiro a poeira de alguns desses projetos, irmãos de fé de outros, já materializados. E então o vejo, bem no canto do quarto, brincando com sua tromba e abanando as orelhas, a aparência tranquila e sempre jovem (sonhos não envelhecem). Parece estar muito bem em sua paquidermidade travessa, como se tivesse feito as pazes com os gritos das crianças e a tensão daquele dia quente e agitado. Cúmplice do meu mais perfeito planejamento, ele não esquece: sabe que qualquer dia desses sairemos juntos para cumprir nosso passeio, sem hora para voltar.

Paulo Malburk, nome literário de Paulo Antonio de Menezes Albuquerque. Selecionado em concursos literários: Revista Philos/CEAT, Rio de Janeiro, homenagem a Chico Buarque, 2019; XXI Prêmio Ideal de Literatura – Prêmio José Teles, Fortaleza, 2019 (Menção Honrosa): Prêmio crônicas Unifor 2021. Coletâneas: Histórias de uma quarentena. e Crônicas de uma Fortaleza Obscena, ambas de 2021. Em 2022 teve a crônica De ser desiderata escolhida dentre as trinta publicadas no livro Crônicas da Fome, por júri composto por Conceição Evaristo, Eleonara Lucena e Frei Betto.Também em 2022 publicou o livro de mini-contos Histórias pirrototinhas. Colabora regularmente no blog coletivearts.blogspot.com (coluna “Deambulâncias”).
Muito bonito. Toca a criança que fomos um dia. E o quarto invisível está sempre lá