O verso elétrico da juventude: emoções e insônias indie-pop [resenha]
O verso elétrico da juventude: emoções e insônias indie-pop [resenha]

O verso elétrico da juventude: emoções e insônias indie-pop [resenha]

por Mayk Oliveira,

poeta e colunista da Revista Navalhista

(perfil completo)

Kahel Santos apresenta, em Feriado das Incertezas (e outras ponderações) (Versiprosa, 2025), uma obra poética que suspende o tempo cronológico para mergulhar na temporalidade afetiva. Um tempo ritmado, pela ausência e pelas minúcias da vida cotidiana. Dividido em três atos — “Os Feriados”, “As Incertezas” e “As Ponderações” — o livro é uma espécie de calendário emocional no qual os poemas se equivalem a um dia vivido com intensidade, ironia e delicadeza. O autor aposta no verso livre, com musicalidade espontânea e contagiante, imagens fortes e sutilezas emocionais. Seus poemas oscilam entre a crônica, o diário, a carta de amor e o desabafo existencial.

Kahel Santos aperta o play para caminhar pelas ruas de São Paulo, ao som imaginário da banda Turnstile, dançar em salas iluminadas por luzes planejadas com amor, tropeçar em memórias e tropeços afetivos, tudo costurado com uma linguagem coloquial e ao mesmo tempo poética, de tom confessional e pungente. As poesias que nascem essencialmente do cotidiano e, por isso mesmo, surpreendem com a sua delicadeza. A cidade não se restringe a ser cenário; é personagem, antagonista, cúmplice espelho das fragilidades humanas.

Poemas como “Carnavrau”, “Manual Incompleto para Apagar Vestígios” e “Quando Fevereiro Morre Dormindo” formatam o conceito de estética da cidade que beira o existencialismo, mas sem perder o humor agridoce. Os versos de “Carnavrau” compõem um dos momentos mais intensos e representativos do lirismo urbano presente no livro: “hoje em dia todo rolê novo que eu vou em São Paulo me tira/ um pedaço/ até que não sobra nada em mim. a cidade toda /é composta de pequenas partes minhas arrancadas. a capital/ que me decapitou. uma revolução francesa à moda paulista/ a calçada repleta de glitter/ ou sangue/ é fácil confundir.” O lirismo urbano aparece na forma da cidade de São Paulo personificada como uma força que mutila afetivamente o sujeito lírico que evidencia a arte de vivência jovem, contemporânea, mas descritos com um tom quase trágico. Não há como negar que existe poesia no caos urbano, nas festas que deixam marcas, nas contradições entre beleza e brutalidade uma metáfora do esgotamento emocional provocado por uma cidade que consome.

Kahel mantém seu rolê lírico no poema “Quando fevereiro morre dormindo” com seguintes versos: tirei um tarô pra gente hoje/ para mim, na verdade/ e o que consiste você em mim/ o que sobra hoje é o espaço/ entre a porta do meu quarto/ e o ônibus que você entrou […] entre o domingo/ e a quarta de cinzas/ entre as cartas do tarô/ entre o ventilador e a cama. A ambientação do poema transforma o quarto, o ônibus, o calor da cidade, os espaços domésticos e os rituais contemporâneos em símbolos mores da cidade.  Estes que são entrecortados por vazios deixados pelas relações interrompidas anunciam uma morte simbólica, se esvaindo sem alarde, como figura metafórica sutil para o fim de um amor, da festa, de tempo mágico. A sensibilidade em extrair beleza da banalidade, em transformar insônia, despedida e rotina em matéria poética é o grande acerto dos poemas de Kahel Santos. Isso é essencialmente subjetividade da metrópole, ou seja, uma poética que emerge do concreto da cidade, da rotina acelerada, das relações líquidas e do desejo de permanência mesmo no efêmero.

Encontramos muito mais elementos utilizados na construção imagética lírica dos poemas de Kahel Santos. A presença de referências pop, regionais e afetivas (Monica Vitti, Murakami, a rua Augusta, o pé de abacate e o ponto de ônibus) insere a poesia em um Brasil muito real, ao mesmo tempo que a eleva a um plano quase onírico. Há um elogio ao fracasso cotidiano, à falha nas relações e à beleza do que escapa. O poeta revela-se sensível observador das pequenas tragédias íntimas e das microalegrias que fazem a vida suportável. O exemplo disso está na repetição do poema “Continuar Existindo” que aparecendo em três momentos distintos funciona como eixo de sustentação da obra, reafirmando a busca pelo sentido em meio ao colapso emocional e urbano. Cada vez que se repete o poema, o que ocorre uma vez em cada ato do livro, se alicia nuances específicas que refletem o estado emocional do sujeito poético diante da vida e da cidade.

No primeiro ato, “Os Feriados”, o texto poético é embalado pela festa, mas já ameaçado pela ressaca emocional. O poema se ancora na efemeridade dos feriados, tentando continuar mesmo diante da exaustão provocada pelos rituais urbanos de prazer. Há energia, ritmo e um fio de esperança, mas fica ali a sombra salgada da repetição e do desgaste. No segundo ato, “As Incertezas”, o retrato íntimo retorna com um tom mais introspectivo e fragilizado. A escrita é mais pausada, contida, expondo as rachaduras que a rotina e as relações provocam. A repetição do título funciona como um mantra diante da dúvida das perguntas sem resposta. A persona poética já não está tão confiante e se equilibra entre permanecer e desabar. Na última aparição, no ato “As ponderações”, o poema “Continuar Existindo” assume a maturidade. Não há mais o mesmo desespero, mas também não há certezas. O verso se transforma em aceitação melancólica numa espécie de rendição pacífica à condição humana. A busca de salvação diminui e o eu lírico simplesmente se dispõem a estar, mesmo que seja apenas entre silêncios e restos de café.

Suas três versões funcionam como espelhos emocionais de uma mesma alma em trânsito que apenas através da arte, através do dispositivo poético pode mapear o desgaste, a resistência e a reinvenção do sujeito frente à vida urbana. Toda essa repetição pode representar uma tentativa de escrever o mesmo poema em tempos diferentes, e isso por si só, já é uma bela definição de continuar existindo.

Em suma, Feriado das Incertezas é um livro que encontra poesia no que resta das madrugadas sem sono, nas feiras de domingo, nos cafés morrendo na xícara, nos silêncios compartilhados, nas mensagens que ficam sem resposta. Uma obra potente que versa sobre os intervalos necessários no caos dos dias.


Kahel Santos

Kahel Santos, nascido em 1994 em Ribeirão Preto, mudou-se para São Paulo em 2017 para trabalhar e explorar novas possibilidades criativas. Estudou Publicidade e Propaganda na UNAERP, e sua trajetória como redator e criador de conteúdo é marcada por um profundo envolvimento com narrativas visuais. Com experiências no mercado audiovisual, Kahel construiu uma carreira que reflete sua paixão por contar histórias, sempre influenciado pelo cinema e pela fotografia. “Feriado das Incertezas” é seu livro de estreia, que começou a ser concebido durante o período de pós-pandemia, uma época de desafios emocionais que ampliou o olhar do autor sobre as dúvidas que cercam as relações e individualidades humanas. A obra é o resultado de três anos de escrita.

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